Capela do Rio do Peixe – 09/03/2019

por Evandro Torezan

Cocalzinho de Goiás, 9 de março de 2019

https://www.strava.com/activities/2202700742

Começo este relato com uma pergunta ao leitor: Por que você pedala? Pense, reflita. Retomarei o assunto à frente.

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Capela do Rio do Peixe é uma comunidade rural pertencente ao município de Pirenópolis. Serviu de cenário para o filme “Dois Filhos de Francisco”, baseado na vida da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano. Incrustada numa região serrana cheia de mata, cerrado, rios e cachoeiras, não pude rejeitar o convite de pedalar por lá.

No sábado de manhã a turma reuniu-se na Igreja Matriz de Santo Antônio, às margens da BR-414, área central de Cocalzinho de Goiás. Fui de carro até Cocalzinho com os amigos André Magoo, Gessé e Salém.

Como meu GPS pifou, dessa vez teria que seguir a turma para não me perder. Tinha o tracklog no celular para alguma emergência, mas meu objetivo era não ter que o usar.

Mais de vinte ciclistas compareceram. O pedal começou às 7h30 da manhã. Fizemos uma oração e partimos para a aventura.

Saímos da cidade pela estrada que segue para a Cidade de Pedra. Logo no início, as belas paisagens da região revelaram-se. Ao norte, a grande chapada da Serra Cocalzinho. Ao sul, a Serra dos Pirineus com seus inconfundíveis picos.

Serra Cocalzinho
Serra dos Pirineus

O pelotão de elite deixou-nos para trás logo no começo. Correria sem fim! Fiquei com os amigos Magoo, Marcão, Emídio e Jocieudes. Evaldo, que estava resfriado e não pôde pedalar, resolveu acompanhar-nos com seu jipe. Ele andava alguns quilômetros e parava no final de alguma subida para nos esperar.

Em certo ponto da trilha, um ciclista que passou por nós informou-nos que Gessé e Salém tiveram problemas na bike e ficaram em Cocalzinho.

Aos dez quilômetros deixamos o caminho da Cidade de Pedra. Pegamos desvio para o norte. Depois de passar pelas nascentes do Ribeirão dos Castelhanos, começamos a subir a Serra Dourada, que acompanha a margem direita do ribeirão. À medida que subíamos as paisagens das serras ao sul iam aparecendo. Serra dos Macacos, Serra de São Gonçalo (Cidade de Pedra) e Serra da Água Limpa. A Serra dos Pirineus é presença constante.

Serra dos Pirineus à esquerda, ao fundo, e Serra de São Gonçalo à direita.

Quase no final da serra, o Morro da Ema passa a ser presença constante na paisagem.

Foram três subidas fortes na Serra Dourada. O sobe e desce terminou quando chegamos ao vale do Córrego do Confisco. Ali há um sítio que estava protegido por dois cães e eles latiram muito quando passamos, mas não nos atacaram.

Logo depois, cruzamos a vau o Córrego Carapuça. Mais dois quilômetros e cruzamos outro afluente do Confisco para chegar ao sítio do Seu João, senhor de 92 anos de idade que continua trabalhando em suas terras e dirige sua camioneta Chevrolet C-10 quando precisa ir para a cidade. Foi ali que Gessé alcançou-nos. Ele conseguiu arrumar a bike e veio correndo. Salém não conseguiu arrumar a sua e ficou em Cocalzinho.

A turma que seguiu sem pressa

Continuamos pelo vale do Confisco, que tem algumas boas subidas. A vista da Serra do Confisco, ao norte, é interessante. Há muita mata.

Chegamos ao vale do Rio do Peixe. Passamos ao lado do Morro da Ema, que marcou a paisagem desde a Serra Dourada.

Aos quarenta quilômetros chegamos à entrada da Fazenda Sítio Novo, onde morou a família Camargo e também foi cenário do filme “Dois Filhos de Francisco”. Entramos pelo estradinha e logo chegamos à casa simples, típica dos sítios do interior de Goiás: paredes brancas, janelas de madeira, algumas colunas de madeira aparente na fachada, coberta de telhas-coxa.

A moradora, Dona Benedita, conhecida na região como Dona Dita, foi quem nos recebeu. Ela é a dona da fazenda. Prima de Francisco Camargo, pai de Mirosmar e Welson (Zezé di Camargo e Luciano). Sua família comprou a fazenda do pai de Helena, esposa de Francisco. A família Camargo morou no Sítio Novo até o início da década de 1970, quando se mudaram para Vila Propício e depois para Goiânia. Várias partes do filme foram filmadas na fazenda.

Cena do filme Dois Filhos de Francisco no Sítio Novo

Tietamos Dona Dita. Fizemos fotos com ela.

Muito simpática, convidou-nos a entrar, o que recusamos para não violar a intimidade de seu lar. Quando estávamos saindo, Marcão foi montar na bike e percebeu que seu pneu estava furado. Disse-nos para seguir pois Emídio o ajudaria a consertar, e foi o que fizemos. Pedalamos mais um pouco e chegamos à ponte sobre o Córrego Mata-Mata. Ali é o ponto mais baixo de toda a trilha. Tributário do Rio do Peixe, hoje em dia ele tem mais água que o rio principal. É água limpa, farta. Árvore grande debruça-se sobre o leito formando belo recanto. Não resistimos. Entramos na água. Bom demais! Água fresca e revigorante.

Voltamos ao pedal enfrentando a última subida antes do povoado. Às 12h chegamos a Capela do Rio do Peixe, com 44 km de pedal. Passei pela capela. O nicho caolho dos sinos é pitoresco.

O pátio em frente à capela foi cenário do filme para a cena em que Zezé tem sua primeira aula de acordeon com o sanfoneiro de uma festa.


Cena do filme Dois Filhos de Francisco em Capela do Rio do Peixe

João Campos esperava-nos na Lanchonete Primavera. Ele encomendou sanduíches de carne para todos os ciclistas, providência fundamental para que conseguíssemos concluir a trilha pois não há restaurantes na comunidade. Essa lanchonete tem um personagem interessante: um dos proprietários é cego, porém, trabalha no caixa e no balcão sem contratempos, recebendo e dando troco exato.

João veio acompanhando o pelotão dianteiro e parecia cansado. Ele resolveu nos esperar para seguir conosco o restante da trilha.

Eu comi o pão com carne e também uma latinha de atum.

Às 12h30 partimos para o restante da trilha. Ainda não havíamos pedalado nem a metade.

Saindo da Capela, há um longo trecho de mata e cerrado de 23 km. Os primeiros sete quilômetros são percorridos escalando o vale do Córrego Santo Inácio por sua margem esquerda. Cruzado o Morro do Poço, descemos até a área da Cachoeira Paraíso. Aproveitamos para refrescar-nos no riacho da cachoeira. Ô água boa!

Saímos do riacho e nos dirigimos à portaria. Na saída, o porteiro deu-nos recado de Evaldo, que estava na cachoeira caso precisássemos de algo.

Seguimos a trilha escalando a Serra da Água Limpa, passando pela entrada da Cachoeira do Rosário. O vale onde fica a cachoeira é lindo, com um grande buritizal que acompanhamos por alguns quilômetros. Há várias pedreiras por ali, explorando quartzito, conhecido popularmente como pedra goiana ou pedra de Pirenópolis. Não sei se estas pedreiras ainda funcionam, mas algumas delas estão inundadas, formando poços de águas verdes.

Paramos para descansar ao lado dessas crateras e contemplar a paisagem. Avistamos chuva ao longe, na parte mais baixa do vale, que parecia estar vindo para nosso lado.

Quando saímos, pedalamos não mais que quinhentos metros e o pneu do Magoo furou. No lugar não tinha uma sombra para nos abrigarmos e o solo de areia branca refletindo a luz do sol fazia os olhos doerem. A turma reclamou com o Magoo, dizendo que ele escolheu um péssimo lugar para furar o pneu. Enquanto eu ajudava a trocar a câmara, o resto da turma, muito unida, arrumou um lugarzinho aconchegante para abrigar-se debaixo de arbustos.

Aos sessenta quilômetros de pedal, quase chegando à Cidade de Pedra, João Campos entrou à direita, saindo da estrada principal. Ali eu percebi que a trilha ainda tinha muitos desafios pela frente. Iríamos descer o vale do Ribeirão Dois Irmãos. Pense num vale profundo!

A descida é das boas, trilhas single, belas paisagens do vale.

Na parte baixa, pegamos trilhas pela mata ciliar até cruzar o riacho por uma ponte de madeira. Continuamos pela outra margem, sempre acompanhando o Ribeirão Dois Irmãos. No final de uma subida, chegando numa porteira, a corrente da bike do João quebrou. Descansamos enquanto ele fazia o reparo.

À esquerda, os paredões verticais da Serra da Água Limpa destacavam-se.

Nesse trecho, uma cobra cruzou nosso caminho. Gessé a protegeu. Ela seguiu tranquila pro meio do capim, sem incomodar ninguém nem ser incomodada.

Quando os paredões da serra começaram a ficar para trás cruzamos a vau o Córrego Cuba. João Campos aproveitou para tomar seu último banho antes de começar a subir. Dali pra frente, acabou a brincadeira. Chegou a hora de enfrentar a outra borda do vale do Dois Irmãos. Este foi o pior trecho do dia. É subida longa, cansativa, ainda mais depois de tantos quilômetros rodados. Quando comecei a subir eu já estava com 65 km rodados.

João Campos estava muito cansado. Parou para descansar no início da subida. Ele disse que “tinha caído uma fase da sua energia”. Segui na frente com Jocieudes e Gessé.

Subimos a Serra do Catingueiro. É na borda norte dessa serra que nasce o Rio Corumbá.

Com cerca de dois terços de serra vencidos, parei pra descansar num trecho de mata. Verificando o camelbak, descobri que só tinha 200 ml de água e ainda faltavam quase quinze quilômetros. Não poderia me demorar senão passaria sede. Resolvi abandonar os colegas. Como conhecia bem o caminho dali pra frente, poderia seguir direto. Calculei que o restante de água que eu tinha daria para beber quatro vezes. Imaginei os locais em que beberia: quando chegasse na BR-070 e em cada topo de subida da sequência de tobogãs antes de Cocalzinho.

Terminei a subida da Serra do Catingueiro com 72 km de pedal. Continuei pela Fazenda Dois Irmãos por mais sete quilômetros, estradas de areia que felizmente estavam bem firmes. A Serra dos Pirineus estava bem próxima.

Finalmente cheguei à BR-070, trecho sem asfalto. Tomei o primeiro gole. Entrei na sequência de tobogãs, sempre tomando água nos topos.

Cheguei rápido a Cocalzinho. Meu pedal terminou na Distribuidora de Bebidas Oliveira. Foram 89 km com 2064 m de subida.

Como meus amigos demorariam para chegar, comprei água de coco e alguns discos de carne para matar a fome.

Cheguei rápido a Cocalzinho. Meu pedal terminou na Distribuidora de Bebidas Oliveira. Como meus amigos demorariam para chegar, comprei água de coco e alguns discos de carne para matar a fome.

Eu estava sentado na frente da distribuidora quando chegou Salém com um casal de amigos. Ela passou o dia na cidade sem fazer nada. A amiga dela, quando me viu, perguntou: “Você estava com a gente?” A própria Salém respondeu: “Estava. Veio no carro comigo.” A moça emendou outra pergunta: “Você se perdeu?” Pelo jeito, estranhou a minha demora em concluir a trilha.

Com esta deixa, retomo o assunto da introdução.

A vida do ciclista de MTB era mais simples quando eu comecei a pedalar. Lá se vão quase trinta anos! Não havia Strava, nem GPS. Perder-se era normal. Dependíamos de alguém que conhecesse o caminho e, por isso, geralmente a turma pedalava unida.

Respondendo à pergunta que eu fiz no início, eu pedalo por vários motivos. Pedalo para conhecer lugares diferentes, remotos, que de carro eu provavelmente não chegaria e a pé demoraria muito. Pedalo para ficar em contato com a natureza. Pedalo para ver paisagens incríveis. Pedalo para desfrutar dos pequenos prazeres que a modernidade afasta de nossas vidas, como relaxar tomando banho no rio gelado, como sentir o frescor da brisa nos momentos de calor, como curtir a sombra de uma árvore nos momentos de sol forte. E fechando a lista, pedalo, principalmente, para conviver com meus amigos. É por isso que, para mim, quando mais demorada a trilha, melhor (mas tudo tem um limite, como veremos no final).

Cada um tem seus motivos para pedalar. Alguns querem treinar para alguma competição. Alguns querem colocar seu nome no topo da lista de algum seguimento do Strava, mero registro esquecido nos recônditos da nuvem computacional.

A pergunta que me fizeram no final da trilha expõe esse paradoxo: “Você se perdeu?” Não, eu não me perdi, muito pelo contrário, sabia exatamente onde estava. Também não esqueci os motivos que me levaram para o MTB e espero que eles continuem sendo o combustível que me move nos finais de semana, devagar e sempre. Se não for pra curtir o caminho, entrar nos rios, tomar banho nas cachoeiras, prefiro ficar em casa.

Não tenho nada contra o pelotão de elite. Cada pessoa tem suas preferências que devem ser respeitadas. O importante é continuar pedalando, mesmo que nos encontremos apenas na partida.

Tem gente que pedala para chegar. Eu pedalo pra curtir o caminho. #ficaadica

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E pra finalizar, registro a história de dois ciclistas que a maioria nem chegou a ver e que quase ninguém conhecia. Eles partiram com o grupo, mas logo ficaram para trás.

Acostumados a pedalar no asfalto, acharam que estavam preparados para essa trilha, mesmo aconselhados por ciclistas mais experientes que os alertaram sobre a dificuldade: “trilha é diferente”.

Entraram numa grande furada. Um deles teve cãimbras com poucos quilômetros de pedal. Mesmo assim, não desistiram. Passaram o dia todo empurrando a bike. O ciclista com cãimbras ficou tão cansado que nem conseguia empurrar a bike, ficando o outro obrigado a levar as duas.

Escureceu e eles ainda estavam na trilha, sem lanterna. As únicas luzes que iluminavam o caminho eram luzes de relâmpagos e a única água que tinham para beber era da chuva pois ficaram receosos de tomar água nos riachos. Na escuridão, sem iluminação, o ciclista com cãimbras caiu numa ladeira e se esfolou todo, sofrendo corte profundo na testa.

Chegaram em Cocalzinho às 23h e antes de voltar para Brasília passaram no hospital para fazer curativos.

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8 comentários sobre “Capela do Rio do Peixe – 09/03/2019

  1. Relato formidável amigo Evandro, ainda mais com a resposta dada “porque você pedala?” , pois sempre faço essa pergunta a varias pessoas, tenho tido várias debates sobre esse assunto. Concordo plenamente contigo. Abraços JuniorPorra

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  2. Boa noite. Toda crítica engrandece. Frequento essa cachoeira a muitos anos e vejo hoje, que em momento algum pensaram em preservar o cartão de visita desta cidade. Demoliram a saída e ponte antiga. colocando horríveis doutos de saída das águas. Agora é tarde sinto muito pela decisão tomada

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