“O desafio é vencer seus medos e superar seus próprios limites.”
Brasília, 7 de março de 2003.
Faz tempo que as corridas de aventura me fascinam. Sempre tive vontade de entrar numa destas competições mas duas coisas me impediam:
1ª: Não tinha nenhuma experiência em orientação; e
2ª: Nunca consegui encontrar alguém que me acompanhasse.
Estou morando em Brasília desde novembro de 2002, e na empresa onde eu trabalho há pessoas de todos os tipos e lugares, é uma babilônia. Há argentinos, chilenos, peruanos e brasileiros de vários estados (paranaenses, mineiros, baianos, paulistas, goianos, candangos, etc). Entre eles há pessoas esportistas e sedentárias. Foi de um dos esportistas que partiu o convite para participar de uma corrida de aventura. Edson Murakami é oficial da reserva do Exército Brasileiro e tem experiência em campeonatos de orientação, onde os percursos são bem menores, mas resolveu encarar a corrida. Juntos formamos a equipe que representou o Pé na Trilha na corrida de aventura “Expedição Serra da Jibóia”.
A “Expedição Serra da Jibóia” contou com 17 equipes competindo e teve um percurso total de 60 km onde foram praticados orientação, bóia-cross (acquaraid), mountain bike, trekking, rapel e canyoning. A prova, organizada pela Aclive Adventure (http://www.acliveadventure.com.br), foi realizada a 50 km de Goiânia, entre os municípios de Anicuns, Santa Bárbara de Goiás, Claudinápolis, Nazário e Palmeiras de Goiás.
Nossa aventura começou na sexta-feira. O ponto de partida da corrida era um camping às margens do rio Anicuns Grande, na rodovia GO-060, a 50 km de Goiânia. Pretendíamos chegar ao camping por volta das 22h mas uma série de acontecimentos atrasou nossa viagem. Saímos de nosso serviço às 18h mas o trânsito de Brasília e o tempo que levamos para organizar nossos equipamentos fizeram com que partíssemos às 19:30h.
Ao pegar a estrada cometemos um erro grave: em vez de pegarmos a saída para Goiânia, em direção a Samambaia, pegamos a saída para Luziânia-GO. Só nos demos conta de nosso erro em Luziânia. Já era tarde demais para voltar, então, seguimos por outras cidades como Vianópolis e Leopoldo de Bulhões para finalmente chegar em Goiânia.
Chegamos em Goiânia por volta das 22h. Pretendíamos jantar antes de seguir para o camping. Nós não havíamos levado dinheiro em espécie e por isso procuramos um caixa eletrônico para retirar dinheiro para o jantar e outras despesas que teríamos. Não encontramos nenhum caixa aberto. Mesmo assim, passamos a procurar uma pizzaria. Rodamos por toda a região de Goiânia onde estávamos e nada de pizzaria. Ninguém sabia nos informar onde poderíamos encontrar uma. Já era quase 23h quando desistimos da pizza e resolvemos comer lanches.
De volta à estrada à meia-noite, chegamos ao camping por volta de 1h da madrugada. Para nossa infelicidade o camping já estava fechado. Chamamos, buzinamos, batemos palmas, mas ninguém apareceu. Avisos na porteira da entrada nos aconselhavam a não entrar se ela estivesse fechada. Seguimos mais um pouco pela estrada e encontramos um local que parecia ser seguro para acampar. Nisso, vimos algumas luzes piscando no fundo do vale. Eram os organizadores da prova sinalizando para que fôssemos até lá. Voltamos então até a porteira, mas ninguém apareceu. Não havendo outra opção, pulamos a cerca do camping e armamos nossa barraca próximo à entrada.
Santa Bárbara de Goiás, 8 de março de 2003.
O movimento começou cedo. Dormimos muito mal. Às 6:00h acordamos e formos reconhecer o terreno. Havia uma barraca ali na frente, ao lado da nossa, e várias outras na parte de trás do bar, na área destinada às barracas.
Nosso café foi magro. Comemos pães que havíamos levado. Depois começamos a nos preparar para a prova. Com tudo pronto e verificado ficamos esperando a liberação das cartas de navegação.
A TV Anhanguera, filiada da Rede Globo de Goiânia, estava cobrindo o evento.
Às 8h nos entregaram as cartas e tivemos uma hora para nos orientar, identificar os pontos de controle e transição e definir nossa estratégia.
Às 8h40 as equipes foram se juntando na área de largada. A adrenalina foi subindo. O Leandro, organizador da prova, deu as instruções iniciais e às 9h liberou a galera. Adrenalina máxima!
Primeira Parte: Bóia-cross
Liberados para iniciar a prova todos disparam em direção às bóias e com elas se jogaram dentro do rio Anicuns Grande. Alguns pegaram as bóias e desceram com cuidado o barranco, de cerca de 1m de altura. Eu pulei pra dentro d’água esperando que fosse fundo, mas não era. Caí em pé, joguei a bóia na água e pulei em cima. Eu não esperava que essa parte da prova fosse tão cansativa, afinal era um bóia-cross. O problema é que o rio estava calmo demais e assim tivemos que remar 5 km rio abaixo até atingir o primeiro ponto de controle. Passamos por várias árvores caídas sobre o rio, onde cair da bóia era inevitável, nossas canelas toparam várias vezes em galhos e pedras submersas e em alguns lugares era impossível desviar dos espinhos da mata de galeria que descia sobre o rio.
Depois de quase duas horas remando rio abaixo, finalmente chegamos ao primeiro ponto de controle (PC). Na margem do rio atolamos até a altura cintura. Com muito esforço conseguimos sair do rio. Eu estava completamente enlameado e muito cansado pela força que fiz para me desatolar. Mas não havia tempo para descansar ou para nos limpar. Passamos pelo PC e continuamos a prova.
– Segunda Parte: Mountain Bike
Pegamos nossas bikes e seguimos pela trilha. Quando saí correndo com a bicicleta, o câmera que estava alí cobrindo o evento saiu correndo atrás de mim pra filmar. Cerca de 1 km à frente havia uma bifurcação. Inicialmente fomos atrás de algumas equipes que estavam na nossa frente, mas logo o Edson constatou que estávamos indo pelo caminho errado. Voltamos e encontramos a trilha certa rumo à serra que crescia em nossa frente.
A partir daí, pensei que teríamos que abandonar a prova. O Edson, que não estava acostumado a pedalar, sofreu muito pra subir a serra. Empurrou quase a subida toda. As outras equipes foram nos passando.
No topo da serra, depois da exaustiva subida, chegamos ao PC 2, onde renovamos nossas reservas de água. Fomos a sexta equipe a chegar neste ponto.
– Terceira Parte: Trekking
Sem perder tempo começamos a busca pelo PC 3, que era um ponto virtual onde teríamos que encontrar a resposta para a pergunta: “Sou assustador, quem sou?”.
Pegamos então a estrada que subia mais ainda a serra. Ela nos levou até o topo de um morro onde havia várias antenas. Mas cometemos um erro, este era o PC 4 e não o PC 3, onde deveríamos ter chegado.
Voltamos, então, para encontrar o PC 3. Vimos uma trilha no meio do cerrado e uma equipe indo por ela. Decidimos segui-la. Foi um sobe e desce de morros até encontrarmos uma árvore com uma fita amarela envolvendo seu tronco e, num de seus galhos, uma abóbora tipo “dia das bruxas”. Era a assustadora resposta que buscávamos.
Voltamos ao PC 4 e rumamos para o PC 5.
O PC 5 foi o mais difícil de ser encontrado. Deveríamos passar por um riacho antes de alcançá-lo mas não estávamos conseguindo encontrá-lo. Na primeira tentativa não encontramos nenhum riacho. Subi no topo de um morro e, ao longe, avistei uma pick-up em uma clareira aberta no cerrado. Suspeitei que lá era o PC 5. Descemos e fomos naquela direção.
Depois de muita busca encontramos um leito seco. Cruzamos este leito e a mata que o cercava. Paramos na tentativa de descobrir se estávamos no caminho certo analisando a carta quando avistei uma trilha bem marcada ao lado de um rancho. Seguimos pela trilha e finalmente encontramos o PC 5.
– Quarta Parte: Rapel
No PC 5 fizemos rapel para chegar ao leito de um rio por onde faríamos canyoning.
Chegando lá nos pediram um equipamento que não estava no regulamento que recebemos. Era um cordelete, que faz auto-segurança quando não há ninguém a fazendo na parte debaixo da descida.
Apesar de ser um equipamento obrigatório eles permitiram nossa descida já que, por uma falha da organização, nosso regulamento estava errado.
Sem segurança, a organização sugeriu que o “rapeleiro” mais experiente descesse primeiro e este faria segurança para o próximo. O Edson, quando serviu o exército, fazia rapel, mas isso foi há 13 anos. Eu havia feito meu primeiro rapel há cerca de um mês. Quando eles disseram que o mais experiente deveria ir primeiro, tivemos um diálogo engraçado:
Organizador: – Olha, não tem ninguém fazendo segurança lá embaixo, então o mais experiente desce primeiro e faz segurança para o segundo. Ok?
Nós: – Ok.
Organizador: – Então quem vai primeiro? – com a corda na mão pra conectar no equipamento.
Evandro: – O Edson, que tem mais experiência.
Edson: – Eu não! Faz 13 anos que não faço isso. Vai você.
Evandro: – Mas eu só fiz isso uma vez na vida, e com alguém fazendo segurança. Vai você que já fez várias vezes.
Edson: – Eu não. Vai você primeiro.
Organizador: – Peraí gente. Vocês disseram que tinham experiência. Não vou poder deixar vocês descerem.
Evandro: – Não. Pode deixar. Eu vou.
Então eu, eleito o mais “experiente”, tive que descer primeiro. Tensão no ar. Desci com muito cuidado. Nem percebi que estava terminando e praticamente sentei no chão quando terminou. O rapel de 20m foi tranqüilo. Chegando embaixo fiz a segurança para o Edson que lembrou-se rapidamente de seus tempos de exército.
Terminado o rapel, entramos na quinta parte da prova.
– Quinta Parte: Canyoning
O canyoning foi a parte mais emocionante da expedição.
No começo pensei que seria fácil, o riacho estava raso e caminhar pelo leito era agradável. Mas isso durou pouco. Logo o riacho mostrou o quanto ele era acidentado. O leito profundo, coberto de mata, pedregoso, estava coberto de limo. Um degrau de 2m nos fez deixar o leito e tentar encontrar um caminho melhor.
Escalamos a parede do cânion, de aproximadamente 3m, e continuamos subindo pela mata. Depois de caminhar por certo tempo e não chegar a lugar algum, resolvemos voltar. Quando estávamos descendo a parede do cânion para voltar ao rio, o galho onde me apoiava quebrou e caí de uma altura de aproximadamente 2,5m no meio da vegetação. Felizmente caí em pé quase dentro do riacho e nada de grave ocorreu.
Estudamos por alguns minutos o terreno para tentar descobrir como ultrapassar aquele degrau. Edson sentou-se numa pedra rente à parede e foi escorregando por ela. Eu fiz o mesmo e conseguimos passar. Mais à frente, outro degrau, de 3m de altura. Neste, nenhuma opção de descida. Lá embaixo, um pequeno poço que parecia ser profundo o suficiente para saltar. Disse pro Edson: “- Pode pular que o poço é fundo.”. Mas ele não quis arriscar. Eu arrisquei. Pulei. Não era tão fundo, mas o suficiente para amortecer nossa queda. Edson também pulou. Continuamos descendo pelo riacho saltando as quedas d’água e escorregando pelas pedras cheias de limo até alcançar o PC 6, que também era virtual. Neste ponto virtual tivemos que encontrar um “arranjo natural feito pelo homem”. O tal arranjo era um pedaço de madeira pendurado com cipós em uma árvore sobre o rio.
Quando a prova terminou a parte mais comentada da corrida foi este cânion.
Do PC 6 teríamos que chegar o PC 7 que era no mesmo lugar do PC 2. Uma falta de atenção à carta fez com que perdêssemos minutos preciosos e nos desgastássemos mais. Em vez de fazer canyoning subindo por um outro riacho, em direção ao PC 7, pensamos que teríamos que fazer trekking. Assim, deixamos o aberto caminho do riacho e entramos na fechada mata que subia o morro.
Foi uma subida horrível no meio da mata, cheia de cipós e bambus. Algum animal gritava nas proximidades. Parecia um porco, ou um bugio, mas não vimos nada. Depois de muito andar neste mato, chegamos na estrada por onde havíamos subido a serra. Daí foi fácil chegar ao PC 7.
Por incrível que pareça fomos a segunda equipe a chegar no PC 7.
– Sexta Parte: Mountain Bike
Voltamos pras bikes. Pegamos as magrelas e descemos a serra. Passamos por búfalos e bois até chegar ao PC 8, que estava na estrada de terra por onde seguíamos. Até o PC 8 ainda estávamos no segundo lugar geral. Saindo do PC 8 uma equipe nos ultrapassou. O Edson não consegui pedalar rápido o suficiente para manter nossa posição.
Chegamos ao asfalto e pegamos um descidão pra voltar ao camping.
Completamos a prova em 9:06h. O resultado foi surpreendente. Em nossa primeira participação em uma corrida de aventura, vencemos a prova na categoria duplas e ficamos em terceiro lugar na classificação geral.
Premiação
No bar do camping formou-se uma grande confraternização entre os participantes da prova. Todos nos felicitavam pelo feito. Primeira prova e primeiro lugar. A premiação aconteceu por volta das 19h. Rebemos os troféus e medalhas no palco armado dentro do bar.
Como tínhamos que voltar para Brasília, depois de premiados, juntamos nossas coisas, colocamos no carro e partimos para Brasília, agora pelo caminho certo. O último desafio foi vencer o cansaço, a chuva e a neblina que enfrentamos na rodovia. Por volta da meia-noite chegamos em Brasília.
O grande desafio das corridas de aventura não é vencer os adversários. O desafio é vencer seus medos e superar seus próprios limites. O troféu está em minha estante mas o grande prêmio é saber que fui capaz de vencer a mim mesmo.

Matéria publicada no Jornal de Cidade, de Sertanópolis/PR.
Vídeos da expedição: