Gruta dos Milagres: História, Fé e Aventura

por Evandro Torezan.

Uma luz na lapa

A história da Gruta dos Milagres começou meio que no sussurro. Alguém disse baixinho, meio envergonhado, com medo da zombaria: “Eu vi uma luz na lapa.” Outro também jurou ter visto tal luz e que, naquele ofuscamento, reconheceu o contorno do véu de Nossa Senhora Aparecida. Quando disseram que uma graça tinha sido alcançada, não teve mais como segurar a notícia. Um devoto agradecido deixou uma santinha de gesso.

Assim começaram as romarias à Gruta dos Milagres, um santuário natural perdido na zona rural de Planaltina/GO. Tudo se espalhou de boca em boca: um milagre aqui, uma graça acolá, e logo a pequena imagem de Nossa Senhora, colocada com devoção no salão inferior da gruta, tornou-se ponto de encontro entre o sagrado e o sertanejo.

Quando se deram conta, já tinha gente vindo de todo canto: Planaltina, Água Fria, Sobradinho, das fazendas espalhadas por tudo quanto é lado. E não vinham sozinhos, não. Vinha o pai, a mãe, os filhos, os vizinhos, todo mundo junto. Com a fé nas costas e a promessa no coração.

Naquela época, primeira metade do século XX, quase ninguém tinha carro. A fé encorajava romeiros que encontravam seus caminhos entre o pó da estrada e o silêncio do cerrado do Planalto Central. A charrete era feita para levar pessoas, mas poucos usavam, o mais comum era a carroça, feita para transportar carga, mas que também servia para as famílias. Para os solteiros e vaqueiros, cavalos e muares eram práticos e resistentes. Mas, se você fosse pobre — e a maioria era — restava andar a pé. E andava-se muito.

As pessoas partiam em grupos, muitas vezes famílias inteiras, rumo à gruta. Caminhavam pelas estradas empoeiradas no calor seco de agosto ou atravessavam o barro pesado nas chuvas de novembro. Não havia pressa. O caminho também era de oração.

Como a gruta ficava isolada, encravada no cerrado, longe de qualquer povoação, era impossível fazer o trajeto todo em um único dia. Então, improvisaram-se acampamentos. Fogões com pedras ou escavados nos cupins, redes amarradas entre os galhos retorcidos de pequizeiros e a partilha do que se tinha: rapadura, arroz, farinha, um pedaço de carne-seca.

Com o tempo, comerciantes começaram a frequentar os encontros. Vendedores de rosários, velas, pamonhas, e até o velho caldo de cana. Mas o momento mais esperado era quando o padre — que só vinha em certos dias santos  — celebrava a missa, reunindo multidões em torno do altar improvisado.

Aos poucos, as coisas foram melhorando. No salão superior construiu-se um altar com grande crucifixo, onde se rezava a missa. Mas logo o espaço já não comportava tanta gente e tiveram que fazer as celebrações na parte de trás da gruta, na sombra das árvores. Com o passar dos anos, outras imagens foram implantadas, como a estátua de Nossa Senhora da Piedade.

Entre cantos, terços e o ranger das carroças, a visita à Gruta dos Milagres se tornou, naquela época, não só um evento memorável, mas também uma jornada de fé.

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O conto acima, baseado em relatos e fatos, tenta resumir o que foi a Gruta dos Milagres entre os anos de 1940 e 1980.

E lá vamos nós!

Planaltina de Goiás, 5 de abril de 2025.

Tracklogs:

O dia não amanheceu tão bonito quanto eu queria. O tempo nublado e o chão molhado que vi pela janela revelavam que choveu durante a noite. Leidiane e eu saímos de casa às 6 horas da manhã. Da minha casa até o Fórum de Planaltina, ponto zero de nossa trilha, são cerca de setenta quilômetros que demandam mais de uma hora de trânsito. Pelo caminho, trechos com e sem chuva intercalaram-se. Nos trechos com chuva, Leidiane, pessimista, exclamava: “Vamos voltar? O tempo tá feio!”. Nos trechos sem chuva, eu, otimista, exclamava: “Lá em Planaltina não está chovendo! Confia.”

Quando chegamos a Planaltina de Goiás, o sol, ainda tímido, secava as ruas da cidade. Evaldo ligou-me para confirmar se ele estava no lugar certo e Reinaldo enviou mensagem de voz dizendo que tinha desistido do pedal por causa da chuva. Ainda dirigindo perdido pelas ruas do centro, não tive tempo de mandar os merecidos desaforos por conta da desistência relâmpago. Quando cheguei ao fórum, lá estava Evaldo, Reinaldo e seu amigo Paulo Henrique. A tal mensagem era bravata. Ele “quase” me enganou. Graças às ruas ilógicas de Planaltina, nossa amizade foi preservada.

Evandro, Reinaldo, Paulo Henrique, Evaldo e Leidiane.

Às 7h30 em ponto, com o tempo ainda fresco, saímos do Fórum de Planaltina com os pneus calibrados e a vontade de explorar em alta. Nosso destino: a Gruta dos Milagres, com direito a uma boa dose de aventura e história.

Tesouro arqueológico e espiritual escondido em Planaltina de Goiás

Imagine um lugar onde o tempo parece ter parado, onde a natureza, a história e a espiritualidade se entrelaçam em silêncio. Esse é o clima da Gruta dos Milagres, também conhecida como Gruta da Lapa ou Gruta Nossa Senhora da Piedade, localizada na zona rural de Planaltina de Goiás, a cerca de 85 km do centro de Brasília.

Apesar de sua impressionante relevância histórica e cultural, esse verdadeiro tesouro ainda é pouco conhecido — e talvez justamente por isso mantenha seu ar de mistério e encanto.

Lapa?

Antes de mais nada, vale entender: a palavra “lapa” é de origem portuguesa e é usada em várias regiões do Brasil para se referir a grutas, cavernas e abrigos rochosos, especialmente aqueles formados naturalmente em paredões ou encostas. O termo carrega consigo conotação de abrigo, refúgio — o que combina perfeitamente com a atmosfera da gruta de Planaltina.

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Logo na saída, o relevo nos foi favorável e descemos muito, passando pelos vales dos córregos Lambari, Vereda Grande, Cava e Pau d’Arco. Os morros ao sul eram prenúncio do que enfrentaríamos na volta.

Chegamos ao vale do Córrego Fundo, fomos cruzando seus afluentes da margem esquerda e logo avistamos a gruta. A vista de longe é impressionante. É bom contemplar um pouco antes de adentrá-la.

Com 21 quilômetros de pedal, chegamos à Gruta da Lapa. 

De santuário natural a refúgio espiritual

A partir da década de 1940, a gruta passou a atrair devotos e curiosos, tornando-se um ponto de romaria e fé popular. Muitos moradores da região ainda compartilham histórias de milagres e graças alcançadas em orações feitas dentro da caverna — daí o nome “Gruta dos Milagres”.

Dentro do espaço cavernoso, há um altar improvisado com imagens de santos e velas, o que reforça seu papel como santuário popular e místico, mesmo sem reconhecimento formal da Igreja.

Entre as décadas de 1940 e 1980, a gruta foi um importante ponto de peregrinação religiosa, onde fiéis se reuniam para rezas, festas populares, Folias de Reis e cantorias tradicionais. Pessoas de Planaltina e de comunidades vizinhas seguiam até lá movidas pela fé e pela devoção. Infelizmente, nesse período, muitas das pinturas rupestres acabaram sendo danificadas ou perdidas, devido à falta de preservação e ao intenso uso do espaço sem orientação adequada.

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Pulamos a cerca e entramos na mata rala que existe no entorno da gruta. Caminhamos pelo matagal espinhento, carregando as bicicletas nos ombros, para evitar algum pneu furado, até encontrar um lugar para deixá-las. A partir dali, seguimos a pé.

Há alguns criatórios de suínos bem próximos, que deixam o ar mal-cheiroso. O cheiro e os restos da granja atraem urubus que encontraram na lapa um lugar ideal para construírem seus ninhos.

Natureza, desafios e beleza

Rodeada por vegetação típica do Cerrado e com acesso por trilhas que atraem aventureiros e ciclistas, a Gruta dos Milagres também é um excelente ponto de ecoturismo. Mas a conservação ainda é um desafio.

Infelizmente, o local sofre com pichações, lixo e incêndios, agravados pela proximidade de criações de animais que afetam o ambiente natural. A degradação preocupa tanto moradores quanto ambientalistas, já que um patrimônio com tamanha riqueza histórica e ecológica merece mais atenção e cuidado.

Outro desafio a ser superado é o assédio das empresas de mineração, que gostariam de transformar a gruta numa fábrica de cimento e cal.

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A gruta é impressionante desde a chegada. Antes de entrar, tivemos a sorte de avistar um pica-pau-de-cabeça-vermelha, vibrante e barulhento como só ele.

Demos a volta pelo oeste, contornando a lapa e passando pelo que parece ter sido um altar em meio às árvores, feito de alvenaria.

Encontramos o caminho até a gruta superior. Quando eu cheguei, vários urubus saíram voando. Nela há um altar de madeira com uma grande imagem de Jesus crucificado. Construíram escadas e paredes de pedra e uma plataforma de madeira com vista para o leste permite observar o movimento na estrada. A boca do salão superior é bem alta e está dividida por uma enorme coluna de rocha que vai do chão ao teto.

Depois, procuramos o caminho para o salão inferior. Não há placas. Fomos seguindo o que parecia ser uma trilha vertical pelas pedras, quase uma escalada. Na parte final, tive que ir pisando no capim para deitá-lo e abrir caminho para a turma.

A boca do salão inferior também é bem grande. Os espeleotemas exibem-se já na parte externa. Estalactites, estalagmites, escorrimentos, etc. Além dos temas naturais, há também uma imagem de Nossa Senhora da Piedade, com Maria apoiando Jesus em seu colo após ser retirado da cruz.

Avisei os amigos na véspera para trazerem máscaras faciais e lanternas. As máscaras são uma precaução para evitar a inalação de muitas impurezas no interior da caverna, que podem causar problemas de saúde.

Entramos na gruta. Lá dentro, o clima muda. Escuro, mais fresco e cheio de silêncios. Nossas vozes ecoavam misturadas aos sons dos morcegos que nos sobrevoavam, passando a centímetros de nossas cabeças. Descobrimos um cachorro mumificado (isso mesmo!), restando apenas o couro sobre seus ossos, e exploramos formações belíssimas, como colunas e outras esculturas naturais. Encontramos uma outra saída e túneis que penetravam nas entranhas da terra. Antes de sairmos, pedi a todos que apagassem as lanternas e pudemos admirar a falta total de luz.

Cachorro mumificado na Gruta dos Milagres

Portal para o passado: arte rupestre de 11 mil anos

Terminada a incursão cavernosa, a gruta trouxe-nos outra surpresa: na boca do salão inferior estão as pinturas rupestres.

A Gruta dos Milagres não é apenas uma formação rochosa impressionante. O local abriga pinturas rupestres datadas de aproximadamente 11 mil anos. As inscrições foram identificadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e revelam traços de ocupações humanas pré-históricas. As imagens gravadas nas paredes da gruta são testemunhos silenciosos de civilizações ancestrais que habitaram a região muito antes de os europeus “descobrirem” o continente.

Um destino para explorar e preservar

Em tempos mais recentes, a gruta foi incluída em rotas turísticas alternativas da região Centro-Oeste, ganhando alguma visibilidade por meio de reportagens e iniciativas de turismo sustentável. Um exemplo é o programa “No Seu Quadrado”, da TV Globo, que visitou o local e destacou sua importância cultural e natural.

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Terminamos a visita e voltamos ao local das bikes e fizemos um lanche.

Saímos da matinha e voltamos pela mesma estrada por cerca de dois quilômetros, até um entroncamento da estrada. Se você não estiver com o preparo em dia, volte pelo mesmo caminho da vinda pois, a partir daí, o bicho pega. Nós seguimos no sentido sul.

A trilha começou logo a castigar. Evaldo e Reinaldo, sem noção do caminho, seguiram na frente e perderam-se. Minha política é não correr atrás de ciclista perdido que gosta de andar na frente, mas Leidiane ficou com dó e ordenou: “Vá buscá-los.” Como manda quem pode e obedece quem tem juízo, saí no encalço dos malfeitores. Aventura extra, como todo bom pedal. Pedalei um quilômetro e encontrei-os sentados no barranco.

Voltei com eles e começamos a subir estradas bastante íngremes. Seguimos pelas cristas dos morros, e aí sim começaram as vistas de tirar o fôlego.

Vales recheados de indaiás, morros pitorescos cobertos de cerrado.

Entramos por uma fazenda, cruzamos o Córrego Matão e enfrentamos uma subida daquelas que fazem a bike pesar o triplo.

Córrego Matão

A vista da tal subida era assustadora. E, no final da ladeira, ainda enfrentamos uma vaca assustada que ficou acuada, para aumentar a emoção. Leidiane diz que as vacas a perseguem.

Tem que subir isso???

A trilha virou um sobe e desce difícil e nossa água foi acabando. Reinaldo era o mais ressecado. O resto ainda tinha um pouco de água.

Quando a coisa parecia que iria melhorar, na cabeceira do Córrego Tigre, o GPS mandou-nos pular a cerca. Era o início da famigerada trilha D-40, a parte das escaladas.

Singletracks travados, compridos, com grande inclinação e cascalho solto.

Fomos dividindo o que restava de nossa água com Reinaldo. No final de uma ladeira, paramos na sombra para descansar.

Mais alguns quilômetros e veio o alívio. Chegamos à Fazenda Santa Helena e pudemos nos abastecer com água.

Com forças renovadas, encaramos o estradão predominantemente descenso até Planaltina, pedalando no modo automático. Terminamos a trilha às 14h30. Na frente do estacionamento do fórum havia uma açaiteria e é claro que fomos até lá para aplacar a fome e o calor. Foi uma ótima trilha, com belos visuais, história e superação. Pedalamos 62 quilômetros com 1.456 metros de subida acumulada.

Assista ao vídeo da trilha e siga nosso canal no Youtube.

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