Os quatro cantos de Cruls

Estudando para escrever meu próximo livro (ainda sem nome), debrucei-me sobre o Relatório Cruls e tropecei num quadrilátero quase desconhecido. Então, nasceu a ideia: “Vou conhecer esses quatro cantos, os quatro cantos de Cruls.”

Luiz Cruls e Evandro Torezan sobre o mapa do Distrito Federal

Senta que lá vem história

O ano era 1892. Depois de quase um século falando-se sobre mudar a capital do Brasil para um lugar no interior do país, finalmente a ideia começou a sair do papel. Para demarcar o lugar, foi escalado um dos maiores cientistas do Brasil na época, o belga Louis Cruls, diretor do Observatório Astronômico Nacional.

Luiz Cruls

Luiz Cruls

Louis Ferdinand Cruls nasceu em Diest, na Bélgica, em 1848. Ele cursou engenharia civil e entrou para o exército Belga. Em 1874, deu baixa no exército e embarcou num navio para o Brasil com fins turísticos. Durante a viagem conheceu o diplomata Joaquim Nabuco que o introduziu na alta sociedade carioca. Logo conheceu Dom Pedro II, do qual tornou-se amigo.

Cruls acabou ficando no Brasil. Foi Dom Pedro II quem assinou o ato de naturalização que transformou o belga Louis Cruls no brasileiro Luiz Cruls. Em 1881, logo após ser naturalizado, aceitou o cargo de diretor do Observatório Astronômico Nacional.

Missão Cruls

A Constituição Federal Brasileira de 1891 determinou: “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabeIecer-se a futura Capital federal.”

Com o objetivo de delimitar tal área, criou-se a Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, instituída pelo Presidente Floriano Peixoto. Essa comissão era formada por 22 membros, sendo chefiada por Luiz Cruls. (Clique aqui para baixar o relatório).

Comissão Cruls no Pico dos Pireneus

Em 9 de junho de 1892, partiu a Comissão do Rio de Janeiro de trem, pela Ferrovia Mogiana, desembarcando em Uberaba, final da linha. Em 29 de junho começaram as andanças. Passaram por Catalão, Ipameri (Entre Rios), Pires do Rio, Piracanjuba e Pirenópolis (Meia Ponte). Em Pirenópolis, escalaram o Pico dos Pireneus para apurar sua altitude, que era superestimada na época. Depois, a comissão dividiu-se em dois grupos com o mesmo destino: Formosa (Couros). Um grupo seguiu praticamente em linha reta, passando por Sobradinho e Planaltina (Mestre d’Armas). O outro fez um cotovelo a leste, passando por Corumbá de Goiás, Luziânia (Santa Luzia) e Planaltina. Reunidos em Formosa, visitaram alguns locais próximos, como o Vão do Paranã, a Chapada dos Veadeiros, a Lagoa Feia e a Lagoa Formosa. Dividiram-se, então, novamente, agora em quatro grupos, encarregados de demarcar os vértices do que ficou posteriormente conhecido como Quadrilátero Cruls.

Os vértices do Quadrilátero Cruls são os seguintes:

  • Marco Sudeste: fixado próximo ao antigo Registro de Arrependidos, na divisa de Goiás com Minas Gerais, atualmente no município de Cristalina, na confluência do Ribeirão Mariana com o Rio Preto. Coordenadas: 16°08′35″ Sul, 3h09m25s Oeste
  • Marco Sudoeste: fixado na beira do Córrego dos Cardoso, atualmente no município de Abadiânia/GO. Coordenadas: 16°08′35″ Sul, 3h15m25s Oeste
  • Marco Nordeste: fixado no Vão do Paranã, entre o Rio Paranã e a Serra da Laranjeira, atualmente Formosa/GO. Coordenadas: 15°20′00″ Sul, 3h09m25s Oeste
  • Marco Noroeste: fixado entre a Serra da Barroca e o Ribeirão Fidalgo, atualmente no município de Vila Propício/GO. Coordenadas: 15°20′00″ Sul, 3h15m25s Oeste

Ao total, os “andamentos” da Missão Cruls totalizaram 5.132 quilômetros. Ao final do trabalho, Cruls entregou um relatório, a certidão de nascimento do Planalto Central e de Brasília.

Cerca de dois anos depois, Cruls foi novamente convocado para o que ficou conhecido como Segunda Comissão Cruls. Dessa vez, o objetivo principal era indicar o local exato onde a cidade-capital deveria ser construída. Porém, devido à falta de recursos, a Missão Cruls II foi interrompida antes da conclusão dos trabalhos. Apesar disso, propuseram duas áreas para a implantação da nova capital: 

  1. o vale do Rio Descoberto;
  2. entre os ribeirões do Gama e Torto. 

Foi neste último local que Brasília foi construída na década de 1950.

Como determinou-se o Quadrilátero Cruls

Mapa dos caminhamentos da Comissão Cruls com o Quadrilátero assinalado

* A escrita dos textos retirados do Relatório Cruls foram modernizados para facilitar a leitura.

A Constituição de 1891 não determinou a forma da zona (sem piadinhas) de 14.400 quilômetros quadrados. Cruls introduz a questão: “Uma segunda questão que convinha resolver era a forma a adotar para a zona do futuro Distrito Federal. Devia-se adotar uma forma irregular tomando como limites os que os sistemas orográfico e hidrográfico pareciam indicar como mais convenientes? Ou seguindo o exemplo dos Estados-Unidos da América do Norte, onde os limites dos estados são simplesmente arcos de meridiano e arcos de paralelo, não era preferível adotar para a área a demarcar a forma de um quadrilátero tendo por lados esses mesmos arcos?”

Analisando a questão, Cruls: “A primeira solução, isto é, a forma irregular, além de outras desvantagens, necessitava muito maior tempo para sua demarcação, pois tornava-se indispensável o levantamento de todo o perímetro da zona, assim como a medição de uma base, operações demoradas, visto o grau de precisão relativamente moderado que requeria uma primeira demarcação, pois era evidente que depois, com tempo e cuidado, se procederia à demarcação definitiva e absoluta por meio de um levantamento geodésico. A segunda solução, isto é, o quadrilátero esferoidal, preenchia melhor o fim que nos propúnhamos, e pelo seu perímetro constituído por uma figura geométrica regular, tinha a vantagem de evitar para o futuro questões litigiosas, que não raras vezes suscitam-se entre estados limítrofes, acerca dos próprios limites”

E conclui: “Foi pois a segunda solução a que preferimos: Restava adotar a forma do quadrilátero. Resolvemos esta nova questão inspirando-nos em considerações concernentes à própria zona, seu sistema hidrográfico, e orográfico, suas riquezas naturais, etc. Pelas considerações acima vimos que a forma mais conveniente para o quadrilátero seria aquela cujos arcos de paralelo e de meridiano teriam cerca de 160 e 99 quilômetros, pois que pondo de parte a forma espherica da terra, esse quadrilátero teria uma superfície de 14.400 kilometros quadrados e um perímetro de 500.“

Mas quais seriam os arcos? Optou-se por escolher coordenadas que passassem próximas a Pirenópolis e Formosa: “Como vimos acima, a diferença da longitude entre Formosa e Pirenópolis quase que era de um grau e meio; por outra parte, conhecendo também proximamente as longitudes desses pontos, resolvemos demarcar o quadrilátero de modo que os arcos de meridiano passassem perto destas duas cidades e os arcos de paralelo ao norte de Formosa e ao sul de Pirenópolis.”

Percebeu aí, amigo pedalante? A posição do Distrito Federal deve-se às cidades de Pirenópolis e Formosa.

As instruções de Cruls para fixação do vértices

Cruls deu orientações precisas sobre a forma de fixação dos vértices. Não era bagunçado, não! As “Instruções PARA AS TURMAS INCUMBIDAS DE DETERMINAR AS COORDENADAS GEOGRÁFICAS DOS QUATRO VÉRTICES DA ÁREA RESERVADA PARA O FUTURO DISTRITO FEDERAL E DE FIXÁ-LAS NO TERRENO” foram as seguintes (lembre-se que não tinha GPS naquela época).

Depois de aproximar-se do vértice, deveriam fixar acampamento “com uma aproximação de mais ou menos quinhentos metros (mais ou menos 16″) em latitude e de : +- 5 quilômetros em longitude.” Em tal local, passariam a determinar com exatidão as coordenadas geográficas, o que era feito através de observações astronômicas. Depois, calculariam a distância do vértice desde o acampamento e assim o encontrariam.

Determinado o vértice, deveriam fixá-lo: “Conhecida esta posição tratar-se-á de fixá-la do seguinte modo: Abrir-se-á no terreno uma escavação, tendo um metro de lado e 1m.30 de profundidade e em coincidência com o respectivo vértice. Esta escavação encher-se-á de pedras até um metro de altura e sobre estas será feito um revestimento de leivas, de modo que a vegetação em poucos dias, possa encobrir o logar. No centro da escavação será depositado um documento assinado pelo chefe e membros da turma, em que serão escritas as coordenadas do vértice, determinadas pela observação e que será metido dentro de um invólucro convenientemente lacrado.”

Marco implantado pelo Exército Brasileiro no vértice noroeste do Quadrilátero Cruls

Veja que não há nada proeminente na construção do vértice, nada que facilitasse a visagem de longe. Todos os componentes modernos encontrados nos vértices atualmente, inclusive os marcos do Exército, foram fixados posteriormente. Em 1992, em comemoração ao centenário da Comissão Exploradora do Planalto Central (Comissão Cruls), o Centro de Cartografia Automatizada do Exército fixou novos marcos em todos os vértices do quadrilátero. O novo marco oficial é um cilindro de ferro fundido, fixado no nível do solo, com inscrições em baixo relevo, como, por exemplo, está no vértice noroeste: SERVIÇO GEOGRÁFICO DO EXÉRCITO – PROTEGIDO PELA LEI – CRULS VERT. NW – SAT – 1992. No ano 2000, o Jipe Clube de Brasília fixou pirâmides de metal sobre os marcos para valorizar o espaço, facilitando sua localização e proteção.

Siga os links abaixo para ler os relatos das visitas aos vértices.

Um comentário sobre “Os quatro cantos de Cruls

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