Luziânia, 24 de agosto de 2019
por Evandro Torezan
https://www.wikiloc.com/mountain-biking-trails/luziania-a-pires-do-rio-39552999
https://www.strava.com/activities/2648123689
Quando recebi o convite para uma trilha longa no auge da seca imaginei que não seria fácil, mas fui conferir a previsão do tempo para confirmar. Umidade do ar: 25%. Índice de radiação ultravioleta: extremo. Possibilidade de chuva: 0%. Um dia comum do mês de agosto no Planalto Central que nós, ciclistas, estamos acostumados a enfrentar. Antes de topar a empreitada, dei uma olhada no perfil altimétrico: 1260 m de subida acumulada para mais de cem quilômetros de distância. Não parecia ser tão difícil. Guarde esses números.
Embarquei na aventura organizada pelos amigos Fernando Marques e João Campos. O pelotão ainda tinha André Magoo, Evaldo, Edson Ceará, Rafael Kobe, Gustavo Zaranza, Gustavo Mota, Marcos Paulista, Mauro, Emídio Irineu, Amarildo, Anderson Paiva e Salem.
O meu dia começou às 3h da madrugada. Nem consegui dormir direito. Fui pedalando até o ponto de encontro, a oito quilômetros de distância. Saí de casa às 3h40 e às 4h cheguei ao Posto da Polícia Rodoviária da BR-060, próximo a Samambaia. Embarcamos numa van rumo a Luziânia.
Com exceção do motorista, acho que todos nós dormimos durante a viagem. A van cruzou Luziânia e seguiu para o sul por estradas de chão por mais 62 km até o ponto zero de nossa trilha, no alto de uma chapada do lado esquerdo do Rio Corumbá.
A preparação para a partida foi corrida. Enquanto o motorista tirava as bikes na carretinha, eu tomava o meu café da manhã (batata-doce com frango). Pelo jeito, só eu levei lanche para a partida. Praticamente, engoli sem mastigar. Foi o tempo exato de comer, ajustar a bike e passar protetor solar. Antes que eu pudesse alongar-me, João Campos chamou a turma. Oramos e partimos.

Começamos a descer o lado esquerdo do vale do Rio Corumbá antes de o dia clarear por completo. O sol começou a nos aquecer ainda na descida da chapada, espantando o restinho de frio que restava.
Névoa seca cobria os vales por onde passávamos, prenunciando a secura do dia.

Aos 12,5 km, numa curva da estrada, avistamos a represa da Usina Hidrelétrica de Corumbá 3.

Ali começou uma descida vertiginosa até o Rio Corumbá. Em 2,5 km descemos 155 m. No final, uma surpresa: uma ponte férrea sobre o rio.

Chegamos aos trilhos da Estrada de Ferro de Goyaz (EFG), hoje operados pela Ferrovia Centro-Atlântica, empresa pertencente à Vale S.A. A EFG foi criada em 1906, mas sua construção começou somente em 1911. Ela foi responsável por trazer grandes progressos ao Estado de Goiás, facilitando a urbanização e a chegada de novos moradores. Em 1957, a EFG foi incorporada pela RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) e, em 1996, com a privatização da RFFSA, passou a ser operada pela Ferrovia Centro-Atlântica.

A ponte tem cerca de cem metros de comprimento, vinte de altura e atravessa o Corumbá pouco antes dele receber as águas do Rio São Bartolomeu.

Como acontece em muitos rios, devido a diferenças físico-químicas entre as águas dos rios, elas não se misturam imediatamente, fenômeno que pode ser observado de cima da ponte.

É uma bela paisagem que se contempla lá de cima.

Do outro lado do rio, após a ponte, há construções de apoio da ferrovia e alguns vagões, tudo aparentemente abandonado.
Anderson e Fernando juntaram-se a mim no pelotão da retaguarda. Seguimos contemplando as belas paisagens do Corumbá, que passamos a acompanhar de perto, seguindo agora por sua margem direita. Uma estrada de chão existe entre a ferrovia e o rio e segue rasgando a mata ciliar, subindo e descendo inúmeros vales perpendiculares, um tobogã cansativo.
De repente, no final de uma descida íngreme, surge um túnel na linha férrea. A estrada de terra passa por cima do morro e túnel abre caminho por baixo para a ferrovia. São 270 m de comprimento. Podíamos ver a luz do outro lado. Entramos para conferir a obra.

Voltando à trilha, depois de quinhentos metros chegamos ao segundo túnel, este mais longo, com 350 m e curvado, o que nos impedia de ver o seu fim.

Seguimos pelo vai-vem da estrada tentando acompanhar o rio, que faz muitas curvas.
Pequena cachoeira artificial chamou-nos atenção aos 44 km de pedal. O riacho foi canalizado para passar sob a linha férrea e na saída da água foi construída pequena escadaria que formou a cachoeira.
Aos 48 km chegamos à abandonada Estação Engenheiro Amorim.

Ao lado da estrada havia grandes montes de areia extraídos do Corumbá. A empresa Lemos S.A. transporta areia de trem para suas filiais em Luziânia e Pires do Rio. Até aqui, nossa trilha seguia conforme planejado.
Logo depois, às 10h da manhã, chegamos ao local definido como nosso ponto de apoio. Para nossa surpresa, a van não estava lá. Como ainda era cedo, imaginamos que ela estaria chegando. Fomos, então, conhecer a grande ponte de concreto que há no local, a Ponte Governador José Ludovico de Almeida. É bem grande para uma estrada de pouco movimento. O Corumbá é muito bonito nessa passagem, largo, com várias ilhas e rochas na água verdinha.

Voltamos ao ponto de encontro marcado e esperamos. Toda a turma estava lá reunida. À medida que o horário marcado aproximava-se, nossa preocupação aumentava. Onze horas e nada do nosso apoio chegar. O desespero bateu. O desânimo era visível. E agora? Eu ainda tinha alguns géis de carboidrato, mas a maioria não tinha nada para comer ou beber. Estava tudo na van: gatorade, água, comida, até cerveja alguns trouxeram. Não foi à toa que os organizadores colocaram a van nesse ponto. Não há nenhum bar no trajeto.
Fomos até uma casa próxima. Conseguimos água. Pelo menos a hidratação estava garantida, mas comida, quase nada.
A brutalidade de todos teria que aflorar caso quisessem chegar ao final do percurso. Pedalar sem comida, com pouca água, sol a pino e umidade do ar em 25% não é tarefa para qualquer um.
Às 11h30, cansei de esperar e resolvi continuar. Defini mentalmente minha estratégia para o restante da trilha: dividir o sofrimento restante em seis vezes sem juros! Como faltavam sessenta quilômetros de pedal e daquele horário em diante o ar estaria cada vez mais seco, pararia a cada dez quilômetros para tomar gel, água e descansar alguns minutos.
Convoquei os amigos: “Partiu, turma!” Mas apenas quatro guerreiros levantaram-se: Edson Ceará, João Campos, Amarildo e Rafael Kobe. Antes de minha primeira parada, Rafael, Amarildo e Edson dispararam na frente. João colou em mim.
Os tobogãs continuaram. É o tipo de terreno que consome as forças do ciclista aos poucos. Subidas curtas, descidas pequenas, poucos trechos planos.

Quando parei no final de minha primeira parcela, dez quilômetros depois do frustrado ponto de apoio, sessenta quilômetros no total, João Campos não parou. Sentei na sombra da mata, tomei gel, água e descansei. Aproveitei para lubrificar a corrente que estava seca.
Pouco antes de chegar aos setenta quilômetros, encontrei João e Amarildo descansando na beira de um riacho. Avisei-os que pararia logo depois, como havia planejado. Eles levantaram-se e seguiram-me.
Quando parei embaixo de árvores no final de um trecho de mata, Amarildo já havia me passado. João, com pouca água, vinha lento. Quando chegou onde eu estava, nem me viu. Chamei-o e ele parou.
Descansamos cinco minutos e partimos. Até os 75 km, tivemos o clima amenizado pela proximidade ao rio e por estar em sua mata ciliar. Dali em diante, depois de passar por uma ponte sob a linha férrea, começamos a nos distanciar do rio e passar por áreas de pastagens e lavouras.

A temperatura aumentou muito e a umidade caiu. Parei novamente aos oitenta quilômetros. Tivemos a sorte de estar num trecho de mata. Paramos embaixo de um baruzeiro e descansamos aproveitando que a temperatura ali era um pouco mais baixa.
Passei pelo Amarildo remendando o pneu da bike embaixo de uma árvore.
Aos noventa quilômetros, passava por pastagem e, coincidentemente, parei embaixo de outro baruzeiro isolado junto à estrada. Deitei-me sob sua sombra e coloquei os pés para cima. Quando passei a mão na testa, levei um susto. Apesar do calor, eu não suava. A testa estava seca, cheia de sal e poeira. Incrível! Eu estava suando em pó! 🙂
De repente, Rafael passou por mim. Ele já deveria estar na cidade naquele horário. Curioso, perguntei-lhe onde tinha ido. Ele respondeu que se perdeu. Também avisou que João estava chegando.
Demorou um pouco, mas João chegou. Ele estava totalmente sem água e só conseguiu chegar ali pois Amarildo deu-lhe um pouco. Abri, então, meu camelbak e compartilhei com ele minhas reservas. Eu tinha cerca de quatrocentos mililitros. Dei-lhe metade. João, que, quando cansado, costuma dizer que “caiu uma fase de sua energia”, dessa vez estava “com as duas fases caídas e com o transformador estourado”. Descansamos bastante, ele dizia estar entrando em pane por falta d’água, disse até estar sentindo dor nos rins. Agora, encontrar lugar para abastecer-nos de água era prioridade. João lembrava-se de um casa à beira da estrada e achava que estávamos próximos.
Seguimos. Parei no final de uma subida para esperar João, onde havia entroncamento com outra estrada de chão. Quando passou um motoqueiro, parei-o o perguntei se haveria lugar para pegarmos água. Ele tranquilizou-me. Disse que logo à frente havia uma casa. Ufa!
João chegou e, avisado de que estávamos chegando numa casa, ficou mais animado. Logo depois, antes de encontrar qualquer casa, avistamos nossa van vindo pela estrada. Pense na alegria! A van havia se perdido e chegou por volta de 12h30 ao ponto de apoio. A maioria da turma já havia partido, apenas três almas cansadas permaneceram no local esperando resgate e agora nos auxiliavam na van. Tomei gatorade e ganhei um cuscuz com linguiça que foi preparado pelo André Magoo e gentilmente presenteou-me com uma porção. João nem brigou com o motorista perdido. Ficou muito feliz por poder tomar a água de coco que tinha trazido de casa e estava geladinha dentro da caixa de isopor.
Abasteci meu camelbak, João pegou o dele, que estava na van, e liberamos os amigos para irem ajudar os outros ciclistas que vinham atrás.
Alimentados e hidratados, a trilha ficou mais fácil.
Fizemos a última parada para descanso aos cem quilômetros. Deitamos sobre o capim numa curva da estrada. Dali, ouvíamos conversas ao longe.
Partimos para a última parcela da trilha. Chegamos rapidamente ao Rio Piracanjuba.

Era de lá que vinham as vozes. Havia pescadores e banhistas. No local da ponte há uma barragem rio acima que está desativada. Faltava pouco. Ao sair do vale do Piracanjuba, avistei a cidade pela primeira vez.
Cheguei ao perímetro urbano de Pires do Rio e enfrentei o último desafio do dia. Um subidão de asfalto impiedoso levou-me ao centro da cidade. Fui diretamente ao Hotel Real, o ponto final de nossa trilha. Só o Rafael Kobe estava por lá.
Resumo da trilha: 112 km de percurso com 2408 m de subida. Os 1260 m de subida informados pelo Wikiloc dobraram. Cuidado com as previsões do Wikiloc pois ele às vezes erra muito.

Depois de tomar banho no hotel, fui conhecer o Museu Ferroviário de Pires do Rio. Desci a pé pois ele não fica longe do hotel. Encontrei Fernando e Gustavo Zaranza por lá. Fomos recebidos pelas simpáticas Franciele e Priscila, dedicadas funcionárias do museu que nos receberam mesmo depois do horário de fechamento.
O Museu Ferroviário de Pires do Rio foi criado em 1988. Ele ocupa o prédio de uma antiga oficina mecânica de locomotivas da extinta RFFSA. O prédio foi construído em 1940 e fica próximo à estação ferroviária da cidade.

As estrelas do acervo são duas locomotivas a vapor, uma Ten Wheeler fabricada em 1895 e uma Vulcan de 1939.
Ten Wheeler fabricada em 1895 Locomotiva Vulcan fabricada em 1939
O museu também guarda outras peças, como balanças, picotadores de passagens e outros itens não relacionados ao tema “ferroviário”. Abriga também a Coleção Jacy Siqueira, doada pela família do fundador do museu, Jacy Siqueira, que contém livros, fotografias, vídeos, etc.
Dali, fomos ainda à Estação Pires do Rio, a 250 m do museu. Bem conservada, a estação abriga hoje o Departamento de Cultura da Secretaria de Educação do município.

Foi a estação ferroviária que deu nome ao município. Inaugurada em 1922, a estação foi batizada como Rio Corumbá, mas o nome não permaneceu por muito tempo, mudando de nome para homenagear o então Ministro de Viação e Obras Públicas do Governo Epitácio Pessoa, Dr. José Pires do Rio, que empenhou-se pessoalmente para dar continuidade às obras da ferrovia nos conturbados anos após a Primeira Guerra Mundial. No local havia a fazenda do Coronel Lino Teixeira de Sampaio, ponto de pouso de tropeiros. Com a passagem da ferrovia, famílias de cidades vizinhas mudaram-se para a área que tornou-se distrito em 1924 e município em 1930.
Coluna Prestes
Poucos sabem, mas a pacata Pires do Rio participou, a contragosto, de importante fato histórico nacional. Em 1927, a cidade foi atacada por integrantes da Coluna Prestes.
A Coluna Prestes foi um movimento político-militar brasileiro ocorrido entre 1925 e 1927. A maioria dos integrantes da coluna eram capitães e tenentes de classe média, mas contou com integrantes de diversas correntes políticas. Sob o comando de Luís Carlos Prestes, o movimento deslocou-se pelo interior do país pregando reformas sociais e políticas e combatendo o governo dos presidentes Artur Bernardes e Washington Luís.
Em 9 de fevereiro de 1927, a cidade foi atacada por resquícios da Coluna Prestes. Eles saquearam as famílias mais ricas e o comércio. Chegaram até a metralhar a caixa d’água da estação ferroviária e remover partes dos trilhos. Cyrillo Reis, chefe da estação, ao perceber o que ocorria, tentou telegrafar para a Estação Tapiocanga (Engenheiro Balduíno), em Orizona, tentando reter o trem de passageiros por lá. Cyrillo não conseguiu comunicar-se a tempo, porém, por coincidência, naquele dia, o trem atrasou. Os revoltosos, então, declararam Cyrillo traidor do movimento e decidiram matá-lo. Amarraram Reis no marco de fundação da cidade e, caso o trem não chegasse, ele seria fuzilado. Apesar de atrasado, o trem chegou e, assim como a cidade, foi saqueado. Cyrillo sobreviveu.
– – –
Terminada a visita aos prédios históricos, voltei ao hotel. A turma já tinha tomado banho. Fomos ao centro da cidade para jantar e, por volta de 20h, partimos para Brasília. No caminho, a van foi parada pela Polícia Rodoviária Estadual, atrasando ainda mais nossa chegada a Brasília. Por volta de meia-noite desembarcamos no posto da Polícia Rodoviária Federal. Eu ainda tive que pedalar até em casa, oito quilômetros, mas, felizmente, só descida.
Pedalzão caprichado e sofrido, daqueles que, durante, dá arrependimento de ter ido e, depois, dá vontade de fazer de novo. Ciclista é um tipo de gente muito doido!
Parabéns a todos os guerreiros que encararam esse desafio. O importante é continuar girando, mesmo se o cata-frouxo resgatar-nos pelo caminho.
Parabéns Evandro, lendo estás suas narrativa faz relembrar a aventura.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Parabéns Evandro…deu vontade de fazer esse pedal, que deve ser bem bonito e difícil com tamanha elevação…abcs
CurtirCurtido por 1 pessoa
Parabéns pela aventura!! Ja fiz esse trecho da ponte férrea no Corumbá (próximo ao São Bartolomeu) ate Pires do Rio. O visual é fantástico.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Parabéns pelo relato nobre Evandro!
A narrativa nos leva pra dentro da trilha e nos faz recordar de momentos parecidos de pedal!
Fica o aprendizado de levar água e comida independente do apoio!
Todos estão de parabéns!
CurtirCurtido por 1 pessoa
Que perrengue hein, Evandro!!! Mas sempre vale a pena né rsrsrs… apaixonante seu relato da saga. Abraço
CurtirCurtido por 1 pessoa
Com certeza foi uma bela viagem apesar do cansaço . Curtiram a natureza o ar puro da selva É valeu os esforços
CurtirCurtido por 1 pessoa
Parabéns Evandro, muito lindo a rota escolhido por vcs,sou de Orizona e conheço muito bem cada pedaço de chão q vcs passaram… Realmente um verdadeiro paraíso.
CurtirCurtido por 1 pessoa