Quebra-Catraca 2024

Simolândia, 17 de novembro de 2024.

por Evandro Torezan.

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Fotos: Google PhotosGoogle DriveFotop

Há anos ouvia falar sobre o Quebra-Catraca, apelido de um evento ciclístico realizado em Alvorada do Norte, município goiano que dista cerca de trezentos quilômetros de Brasília. Nunca me animei em participar, mas, neste ano, com o apoio de Leidiane e a pressão dos amigos, embarquei nesta aventura.

Saímos de Brasília no sábado pela manhã e viajamos para Alvorada do Norte, onde chegamos na hora do almoço. Hospedamo-nos em um hotel em Simolândia.

Alvorada do Norte e Simolândia são cidades irmãs, separadas pelo Rio Corrente, que divide a área urbana, estando Alvorada na margem esquerda do rio e Simolândia na direita. É curioso ver duas cidades pequenas tão próximas, e uma questão logo vem à mente: por que não são um só município? A resposta está na origem das cidades. Alvorada do Norte surgiu em 1958, dentro do município de Sítio D’Abadia, movimento proposital que se antecipou à construção da rodovia BR-020. O povoado foi elevado à categoria de município em 1963. Naturalmente, do outro lado do Rio Corrente, outra comunidade surgiu, porém ali era território de Posse/GO. Em 1982, criou-se o distrito de Simolândia e, em 1988, Simolândia emancipou-se.

As cidades estão situadas em um lindo vale nas margens do Rio Corrente e da BR-020. Na borda oeste desse vale, estendendo-se no sentido norte-sul por doze quilômetros, está a Serra da Chapadinha, que tem espigões de cumes estreitos nos extremos e um grande platô na porção setentrional. A borda leste do vale é composta pelas escarpas inclinadas da Chapada da Vereda Comprida, que vem do sul e é limitada ao norte pelo Rio Corrente.

Rio Corrente e a ponta sul da Serra da Chapadinha

O nome oficial do evento é “Passeio Ciclístico do Rio Corrente”, mas foi o apelido que pegou: Quebra-Catraca, referência ao grupo de ciclismo que organiza o passeio. Nesta oitava edição, quinhentos ciclistas inscreveram-se.

À frente da organização estão os integrantes do grupo Quebra-Catraca: Amós, Alcione, Alessandra, Kelly, Lú Dias, Lú Souza, Renata, Robson e Zé Maria. O Passeio Ciclístico do Rio Corrente é realizado há oito anos, com percursos variados na parte alta da Chapada da Vereda Comprida, mas que tem a subida Quebra-Catraca como principal desafio.

Da esquerda para direita: Robson Almeida, Amós Avelar, Alcione Araújo, José Maria Teixeira, Lú Souza, Lú Dias, Alessandra Lima, Renata Lopes e Kelly Avelar.

A cidade estava cheia de ciclistas. Para onde se olhava havia carros carregando bicicletas, vans estacionadas, ciclistas circulando de bike e a pé. De noite, nos reunimos com uma turma de Brasília numa lanchonete no centro de Simolândia.

Começou a chover no sábado à noite e a chuva estendeu-se pela madrugada do domingo, abalando o sono de muitos dos participantes. Leidiane e eu dormimos bem pois no final de semana anterior, 16 e 17 de novembro, estivemos em Pirenópolis para o 14º Piriporra, que foi debaixo de chuva, ou seja, estávamos preparados para pedalar na lama se fosse preciso.

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O domingo amanheceu nublado. Às 5 horas fomos montar nossas bicicletas, que ainda estavam dentro do carro. Para minha surpresa, meu pneu traseiro estava murcho. Troquei a câmara rapidamente e fomos tomar o café da manhã.

Às 7 horas fomos pedalando até a Pousada Fundo de Quintal, local de partida do evento. Encontramos Cris Pimentinha e Alexandre Bastos que viajaram conosco na véspera, mas ficaram em outras acomodações. O café da manhã estava servido, e que café! Melhor do que o do hotel onde nos hospedamos. E lembre-se que são quinhentos ciclistas esfomeados. Tinha frutas variadas, leite, café, cuscuz, pão, bolos, sucos, etc. Comemos mais um pouquinho, reforçando a nutrição.

Depois do café, Cris sugeriu que começássemos a pedalar antes da partida oficial. É que se chegássemos muito tarde à mortífera subida da chapada, encontraríamos muitos ciclistas subindo e teríamos mais dificuldade. Bastariam alguns paus-de-rato empurrando para interditar a estradinha e fazer todos juntarem-se ao sofrido pelotão.

Cristo Redentor de Alvorada do Norte. Fonte: Lucas Baliza – Google Maps.

Então, partimos, Alexandre, Cris, Leidiane e eu. Cruzamos o Rio Corrente pela ponte da BR-020 e do outro lado, em Alvorada do Norte, fomos pelas ruas próximas ao rio até sair da cidade, seguindo no sentido leste. Ainda no perímetro urbano, avistamos a imagem do Cristo Redentor de Alvorada do Norte, no alto da chapada, de frente para a cidade. Assim, de longe, ele é pequeno e bem difícil de enxergar. Se ninguém dissesse, não seria possível reconhecer que aquela imagem difusa é um Cristo de braços abertos.

À nossa direita, os inclinados paredões da borda da chapada lembravam-nos do desafio que estava chegando.

Seis quilômetros depois da cidade, entramos numa estrada à direita. Muitos dizem que a subida famigerada começa ali, e não é sem motivo, mas é apenas uma amostra do que vem pela frente. Seguimos na sombra das árvores que restaram na beira da estrada, lembranças do belo cerrado que havia ali num passado não tão distante. Uma ladeira de 600 metros com 9% de inclinação média serve de aquecimento. Depois dela, desce-se para cruzar o Córrego Retiro. Antes da ponte, uma faixa avisa que ali começa o desafio.

Encontramos o Sr. Amós e sua esposa, Neuza, fazendo apoio na beira do córrego, ao lado de uma casa de madeira bem conservada.

Cruzamos a ponte e iniciamos a escalada. Metade da subida é dentro da floresta da borda da chapada, onde o calor é amenizado pela sombra da mata, mas não passa nenhum ventinho. Os trechos mais inclinados estão na primeira parte, chegando a incríveis 19,7%. Alguns trechos têm obstáculos complicados, como valas e degraus, onde é preciso acelerar para a bicicleta não travar. A aorta pulsa com força.

Na saída da mata, uma faixa diz que já chegamos à metade. A parte final é mais aberta, a estrada é cercada de cerrado e a altitude permite que o vento entre e alivie um pouco o calor.

Quebra-Catraca (foto no sentido da subida)

Uma curva fechada alimenta a ilusão de que a subida está acabando, mas o que se vê ao alcançá-la é uma ladeira interminável.

Quebra-Catraca (foto no sentido da descida)

O suor escorre pela testa e cai no olho, que arde, deixando-me cego por alguns segundos. O coração bate a mil, calafrios percorrem o corpo e o estômago dá sinais de que o café da manhã fará o caminho contrário. O cérebro tenta administrar os limites entre a vontade de vencer o relevo e manter o corpo funcionando. O final da subida aparece. Respiro fundo, inflando ao máximo os pulmões para que o oxigênio ajude a gerar mais energia para a escalada final. No alto, um fotógrafo está estrategicamente posicionado para pegar o ciclista empurrando a bicicleta ou pedalando. A diferença entre a glória e o fracasso depende apenas de você, do seu pé tocar ou não o chão.

Glória? Só para você, na sua intimidade. Poucos reconhecerão. Fracasso? Apenas seu amigo mais chato vai lembrá-lo disso. A verdade é que se você saiu de casa para pedalar, o que muitos não fazem, porque não querem ou não podem, já pode se considerar um vencedor.

E foi assim que chegamos ao alto da Chapada da Vereda Comprida. No total, 4,5 quilômetros de distância com 392 metros de ganho de elevação, 8,4% de inclinação média e 19,7% de inclinação máxima. É uma subida difícil, não há como negar. Sentei-me no alto, ao lado do fotógrafo, e fiquei esperando Leidiane, que logo chegou, e também Cris. Alexandre, que não pedalava há quase 30 dias, nem sinal. Cris chegou pedalando e saiu bem na foto.

Ela disse que Alexandre iria demorar, então parti com Leidiane. Seguimos pelo alto da chapada, sentido sul, entre trechos de cerrado e lavouras. Quem estiver animado e quiser visitar o Cristo de Alvorada do Norte, a hora é esta. Basta pegar a primeira entrada à direita e seguir por nove quilômetros para contemplar a belíssima vista do vale. Depois é preciso voltar ao percurso original, mais nove quilômetros pelo mesmo caminho.

Cristo Redentor de Alvorada do Norte. Fonte: Viajante do Futuro – Google Maps.

Nós não visitamos o Cristo, afinal, o Amostradinho estava em nosso encalço.

Ficamos em dúvida numa bifurcação, mas uma placa da organização nos ajudou. A placa estava com o logotipo do grupo Quebra-Catraca invertido, então pensamos que ela poderia estar na posição contrária. Decidimos confiar e acertamos. Depois de passar pelas cabeceiras do Rio Santo André, que estava à nossa esquerda, a leste, encontramos o segundo apoio, aos 27 quilômetros de trilha. Gatorade e água à vontade para os devidamente inscritos.

Finalmente viramos para o leste e seguimos por mais dez quilômetros, ainda pelo alto da chapada. Numa bifurcação, encontramos o terceiro apoio. Mais uma amostra do motivo desse evento ser tão prestigiado. Nesse local, além de água e gatorade, tinha refrigerante e sucos, de caju e manga, mas não pense que era suco de caixinha, ou algum outro artificial, nada disso. Era suco “da fruta”, mesmo, de cajuzinho-do-cerrado e de manga. Para comer, pão com carne moída, quentinho! Nem sei por que motivo eu trouxe o camelbak.

Na bifurcação, se fôssemos à direita, logo chegaríamos ao Capão, distrito de Sítio d’Abadia/GO, mas nós fomos à esquerda, descendo a chapada. A estrada de terra atravessa área de mata, apresentando belas paisagens dos dois lados. Do lado esquerdo, o lindo vale do Rio Santo André, do direito, o vale do Rio Corrente e de seus afluentes.

Depois de descer tudo, já na baixada do Rio Corrente, começamos a encontrar árvores incríveis! Eram enormes paineiras (Ceiba speciosa), também chamadas barrigudas. Isoladas, sem mata em volta, seu formato inconfundível facilitou a identificação. A primeira que vi era bem alta e depois fomos encontrando outras pelo caminho. A última, perto da ponte do Rio Santo André, estimo que o tronco tinha quase dois metros de diâmetro. Como o nome popular revela, a barriguda tem a parte de baixo do tronco dilatada, e é por isso que também é conhecida como baobá brasileiro, referência à árvore africana de caule grosso e copa compacta.

Paineira (Ceiba speciosa), também conhecida como barriguda, é o baobá brasileiro.

Logo depois, encontramos outro apoio. Nesse, “só” tinha água. Só paramos para conversar um pouco com as solitárias “apoiadoras”.

Acompanhando o Rio Corrente pela margem esquerda, sentido norte, logo chegamos a Mundo Novo, outro distrito de Sítio d’Abadia. No meio do distrito, com casas ao longo da estrada, encontramos outro apoio. Dessa vez, tinha sorvete de açaí! Inacreditável!

Depois de Mundo Novo, a estrada sobe um pouco, mas nada comparado ao que enfrentamos para chegar ao alto da chapada. Então, faz curva para o oeste, assim como o Rio Corrente, e começa a descer para cruzar o Rio Santo André. As paisagens são lindas.

Passamos também pelo Córrego Retiro e logo depois da Fazenda Furna Grande, encontramos o último apoio, com gatorade e água. Fizemos uma paradinha rápida, tomamos gatorade, batemos papo com os “apoiadores” e seguimos para o estirão final até Alvorada do Norte.

Dali até Alvorada foi bem rápido. Passamos pelo entroncamento que leva à subida mas seguimos reto dessa vez, já que Leidiane não topou dar outra volta (o que comemorei silenciosamente). Atravessamos Alvorada, cruzamos a ponte e logo chegamos à Pousada Fundo de Quintal, ponto final da trilha. Terminamos o passeio às 12h10. Pedalamos 79 quilômetros e subimos 1.195 metros.

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Recebemos nossas medalhas de participação e escolhemos uma mesa para esperar o almoço que estava prestes a sair. A cantora Gisele Elvas animava a tarde cantando boas músicas da MPB.

Estrategicamente posicionados, quando anunciaram o almoço, fomos logo para a fila. Que almoço fantástico! Churrasco impecável, de botar no chinelo churrascarias renomadas de Brasília. Tinha picanha, amigo pedalante, de verdade, não era abóbora, não. Imagine servir quinhentas pessoas com alimentos de primeira qualidade. Que organização!

Já tínhamos terminado de almoçar quando Alexandre e Cris chegaram. Eles sentaram-se conosco e, depois de servirem-se, constatamos nos seus pratos que a qualidade da comida continuava a mesma.

Depois do almoço, voltamos ao hotel para tomar banho e fazer o checkout.

De volta à pousada do evento, encontramos Lcaso e Ione, que também tinham feito a trilha. Lcaso convidou-nos para a inauguração da nova sede TVN Brasil, que mudou-se de Vicente Pires para o Recanto das Emas. Eu pensei que seria só pro coquetel, mas caí numa cilada e quando percebi eu estava na bancada do programa Interação para falar do “8⁰ Passeio Ciclístico do Rio Corrente”, e, é claro, só foram elogios.

Inauguração da nova sede da TVN Brasil. Da esquerda para a direita: Alexandre Bastos, Lcaso, Ione e Evandro Torezan.

Antes de encerrar, deixo aqui meus sinceros agradecimentos. Parabéns aos organizadores pelo evento impecável, aos patrocinadores por tornarem possível um encontro tão grandioso e aos voluntários que cuidaram de cada detalhe e nos receberam como velhos amigos. Vocês fizeram história!  

Os patrocinadores do 8º Passeio Ciclístico do Rio Corrente.

O “Passeio Ciclístico do Rio Corrente” não é apenas um evento, mas uma experiência. Entre as paisagens exuberantes, os desafios do percurso e a calorosa recepção, fica a certeza de que vivemos algo especial. A glória de completar a prova é pessoal, mas o espírito de superação e camaradagem foi compartilhado por todos. Saímos de lá não apenas com medalhas, mas com histórias inesquecíveis e o desejo de voltar no próximo ano.  

Afinal, como diz o ditado: “A vida é como pedalar uma bicicleta. Para manter o equilíbrio, é preciso seguir em frente.” E nós seguimos, felizes, com o coração cheio de gratidão e a certeza de termos vivido uma grande aventura.

6 comentários sobre “Quebra-Catraca 2024

  1. Excelente texto, isto nos deixa lisonjeado, por isso acreditamos que entregamos o nosso melhor nesse evento e deu tudo certo, esperamos você e sua turma no próximo e no próximo, e no próximo… obrigado pela estada conosco.

    Paulo da Mata

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  2. Texto cheio de riquezas e detalhes sobre esse evento.

    Ao ler sobre como se sentia ao encarar a subida do quebra catraca, as sensações que relata, foram as mesmas que eu sentir.

    Parabens por descrever o que muitos não conseguem ek palavras.

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  3. Que texto lindo!
    Li cada parágrafo com uma alegria no coração por ver tanta gratidão por nosso evento, nossas cidades e nosso povo descrito com maestria de um excelente escritor (autor do blog)! Como moradora e participante do Grupo Quebra Catraca, agradeço por levar ao mundo uma experiência tão positiva do nosso 8º evento ciclístico e do nosso amadíssimo grupo!
    Muito obrigada!!!

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  4. Parabéns, Evandro. Que aventura!

    Profundo o pensamento: “A diferença entre a glória e o fracasso depende apenas de você, do seu pé tocar ou não o chão.”

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  5. Fazia tempo que eu não lia um texto tão inspirado. Andar de bike é muito sobre isso, curtir o caminho, a liberdade que proporciona, o vento no rosto e a experiência que você relata me pegou por aí. Muito legal, agora quero conhecer o Quebra Catraca também.

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