Tá bom, eu confesso! Entrei de gaiato nessa aventura. Como quem aceita um convite para ir pedalar no Parque da Cidade, embarquei nessa jornada.
O imponente Monte Roraima é o local de mais difícil acesso em que já pus os pés, o mais ermo, talvez, o mais perigoso. Desde o início dos preparativos, preocupei-me com a parte física mas esqueci-me da parte prática.
Explico: nunca caminhei tanto! A previsão de caminhar noventa quilômetros em sete dias me assustou. Em meus tempos de enduro a pé (trekking de regularidade), os percursos eram mais curtos e, geralmente, levavam apenas quatro ou cinco horas. Temia ter dores nos joelhos e costas devido às distâncias percorridas e ao peso da mochila (cerca de dez quilos). Temia ganhar bolhas nos pés.
Já a parte prática … ignorei. Onde dormiríamos? Como dormiríamos? Onde comeríamos? Haveria banheiro?
A primeira vez que ouvi falar do Monte Roraima foi em julho de 1995. Assinante da saudosa revista “Os Caminhos da Terra”, recebi em casa meu exemplar, trazendo na capa o montanhista paranaense Waldemar Niclevicz, que naquele ano tornou-se o primeiro brasileiro a chegar ao topo do Everest. A reportagem secundária relatava a viagem de dois repórteres da revista ao Monte. Lembro-me que um deles sofreu pequeno acidente, quase comprometendo a viagem. Ele desequilibrou-se na subida e caiu alguns metros. As imagens da revista me deixaram intrigado. Que mundo estranho era aquele em plena floresta amazônica?
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Eu tinha um restinho de férias para tirar em outubro. Meus planos eram modestos: pedalar de Brasília ao Paraná, seguindo pela BR-153, para visitar meus pais. Mil e cem quilômetros. Dez dias seriam mais do que suficientes. Coincidência ou não, todos os amigos a quem relatava minha iminente aventura consideravam a viagem muito perigosa. Isso foi me deixando preocupado. Seria um aviso? Desisti. Foi aí que Adenauer, colega de trabalho, noticiou que iria ao Monte Roraima. Ele viajaria no mesmo dia em que eu entraria de férias e retornaria no meu último dia de descanso. Se tivéssemos combinado, não daria tão certo. Era a oportunidade que eu esperava. Pensei no assunto, considerei prós e contras e, quinze dias antes da viagem, decidi ir com ele. Passagens compradas, pacote turístico pago. Pronto! Não havia como desistir.
Quem nos levou foi a Chapada Trekking, empresa de Igatu/BA. O simpático e divertido Dmitri foi nosso guia brasileiro.
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Viajamos no final da noite de 5 de outubro. Aterrissamos em Boa Vista, capital de Roraima, na madrugada do dia 6. Vinte e sete graus Celsius marcava o termômetro à 1h20, sinalizando o calor que enfrentaríamos quando o sol nascesse.
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No dia 6, tivemos que inventar algo para passar o dia. Caminhamos por Boa Vista que, apesar de ser capital de estado, é uma cidade pequena, com cara de interior. Das 10h às 16h os habitantes se escondem, devido ao calor causticante. É uma cidade limpa, bem cuidada. Com 350 mil habitantes, Boa Vista concentra 65% da população do estado. É uma cidade moderna, projetada pelo engenheiro Darcy Aleixo Derenusson, que utilizou o traçado do modelo francês, radial, com avenidas principais convergindo para a Praça do Centro Cívico Joaquim Nabuco.
Caminhamos pela orla do Rio Branco e no final da tarde fizemos um passeio de barco, conhecendo o rio e suas praias.
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Dia 7. Começou a aventura. Partimos para a Venezuela. Foram 220 km de asfalto até a cidade de Santa Elena de Uairén. No caminho, passamos pela Quebrada Jaspe, uma bela e congelante cachoeira, onde tivemos nosso primeiro contato com os puri-puri, mosquitos hematófagos semelhantes aos borrachudos (Brasil), que deixam um pontinho de sangue na pele quando picam.
Pelo caminho, fomos nos deparando com as dificuldades enfrentadas diariamente pelo povo da Venezuela.
Filas quilométricas no único posto de gasolina da cidade. Com menos de R$5, um venezuelano compra gasolina suficiente para circular com seu carro pelo ano todo. Ou seja, o preço é ridículo! Resultado: ter um posto de gasolina é um péssimo negócio. O que se fatura em um mês pode ser insuficiente para pagar o salário dos funcionários, e olha que o salário-mínimo lá equivale a R$80! Desta forma, os postos são raros e, óbvio, todos da PDVSA, a estatal petrolífera venezuelana.
A maioria da população não tem acesso ao sistema bancário, forçando o povo a usar dinheiro. A princípio, não parecer ser problema, porém, a hiper-inflação deteriorou o Bolívar, a moeda local. O câmbio oficial, controlado pelo governo, é totalmente descolado da realidade. Assim, cenas bizarras podem ser presenciadas. Qualquer birosca tem máquina de conta dinheiro. Nos mercados, há pilhas de dinheiro nos caixas.
Nas prateleiras dos mercados há poucas opções de compra. Quando não estão vazias, geralmente há apenas uma marca de cada produto. Medicamentos estão em falta. Itens básicos de higiene como papel higiênico, xampu, desodorante, absorvente íntimo, fraldas descartáveis, são itens de luxo. Alguns produtos são controlados pelo governo e quando chegam nos mercados, os consumidores podem adquirir apenas uma unidade.
Energia elétrica está em falta e os apagões são diários.
Apesar de tudo isso, a população sofrida tenta levar a vida. Em uma rápida pesquisa que fiz na trilha, indagando cuidadosamente os venezuelanos que encontrei (ricos e pobres), houve unanimidade nas opiniões sobre o regime atual. Ninguém apoia Maduro. A resposta mais incisiva foi: “Maduro es una mierda!”
Dormimos na pousada Villa Apoipo, em Santa Elena.
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Dia 8. Foi nosso último contato com o conforto. Em carros 4×4 fomos levados a Paraitepuy, uma aldeia indígena dentro do Parque Nacional Canaima, na Gran Sabana.
O trekking começou ali. Cerca de 25 pessoas compuseram nossa expedição: 13 turistas, o guia brasileiro, o guia local, cozinheiros e carregadores.
O Roraima e seu irmão menor, o Kukenán, são presenças constantes na trilha, que não nos deixam esquecer dos desafios que se aproximam.
No primeiro dia, caminhamos onze quilômetros de trilha. Pernoitamos no Acampamento do Rio Ték.
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Dia 9. Atravessamos o Rio Ték logo cedo. Caminhamos dez quilômetros até o Acampamento Base. Depois, cruzamos o Rio Kukenán, onde pudemos nos refrescar em suas águas geladas. Por volta das 12h, paramos para lanchar no Acampamento Militar. Chuvas ameaçavam nos pegar pelo caminho, assim, lanchei rápido e parti para tentar chegar seco no acampamento. Deu certo.
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Dia 10. Hora de escalar o Roraima. A primeira ascensão de que se tem notícia foi 1884, pela expedição liderada por Everard Ferdinand im Thurn, botânico inglês. Até hoje, a Rota de Paraitepuy é a única para se alcançar o platô sem uso de equipamentos de escalada.
É o que se chama da escalaminhada. Não é fácil. São quase novecentos metros de desnível. É muita subida, usando pernas e braços, apoiando-se em pedras e árvores. O pior trecho é o Paso de las Lágrimas. Do alto do Roraima escorre pequena cachoeira que molha todos que passam pela trilha, deixando as pedras lisas. Por coincidência, ao passar pelo Paso, começou a chover, levando-nos em “lágrimas” até o topo.
Contemplamos a paisagem e caminhamos até o Hotel Sucre, nosso lar por três dias. Mas não se anime. Hotel é apenas no nome. São apenas cavernas e reentrâncias nas rochas onde se montam as barracas.
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Dia 11. Caminhamos dezesseis quilômetros pelo platô. Visitamos o Ponto Triplo, tríplice fronteira de Brasil, Guiana e Venezuela; o Vale dos Cristais, vale repleto de cristais de rocha; e El Foso, cratera com cachoeira, lago e caverna.
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Dia 12. Fomos ao espetacular mirante “La Ventana”, em frente ao Kukenán. Paisagem fantástica: cachoeiras gigantes, a impenetrável selva guianense e nuvens formando-se em nossa frente, ao alcance das mãos. Dali, partimos para as Jacuzzis: banheiras naturais de águas geladíssimas e transparentes. Mas para serem verdadeiras Jacuzzis, faltou a hidromassagem.
Voltamos para o acampamento, almoçamos e no final da tarde fomos ao Maverick. É o cume do Roraima, com 2810 m de altitude em relação ao nível do mar. Ganhou esse nome pois, visto de longe, a pedra tem o formato de um Ford Maverick.
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Dia 13. Acabou nossa estada no platô. Descemos. Haja joelho! Enquanto a subida judiou das coxas, a descida forçou os joelhos. Desta vez, o Paso de las Lágrimas foi mais seco. Descemos rápido até o Acampamento Base, onde almoçamos. Depois, a caminhada continuou. Passamos pelo Rio Kukenán e terminamos o dia no Acampamento do Rio Ték. Foi o dia da mais longa caminhada: dezessete quilômetros.
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Dia 14. Último dia de trekking. Voltamos para Paraitepuy, onde chegamos por volta das 11h30. Panturrilha e pés inchados eram os sinais de cansaço. Sobrevivi! Aguardamos a chegada de nosso transporte que nos levou de volta à civilização.
No restaurante contratado, no vilarejo de San Francisco de Yuruaní, tivemos pratos feitos com frango assado. Estavam deliciosos, mas a quantidade era pouca. Mesmo com toda nossa diplomacia, a negociação por mais frango fracassou. Tivemos que ir ao restaurante do outro lado da rua. Conseguimos mais quatro pratos de comida, refrigerantes e porções de banana frita. Foi um banquete.
Duzentos mil bolívares foi a conta, no câmbio super apreciado do comerciante. Ostentei, pagando a conta de todos com quarenta reais.
Pegamos a estrada até Santa Elena. A van que nos levou de volta ao Brasil demorou, mas chegou. Na fronteira, ninguém para carimbar nossos passaportes e registrar nosso retorno. Chegamos em Boa Vista no final da noite.
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Dia 15. A maioria da turma, espalhada pelos hotéis da cidade, preferiu ficar descansando. Alguns poucos, onde me incluo, preferiu passar o dia nas praias do Rio Branco. Nosso ótimo grupo ainda encontrou-se no almoço e no jantar.
A viagem terminou na madrugada. De avião, voltamos para Brasília.
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A viagem foi fantástica. O Roraima é bruto, mas é lindo. Obrigado a todas os aventureiros que compuseram este grupo maravilhoso que já deixa saudades. Caminhamos quase 100 km, subimos aos 2810 m da montanha.
Que venham os próximos desafios!
PS: outro bom relato dessa aventura está no blog Mulheres Mochileiras, de Fátima Quintino, que estava comigo na viagem. Confira: https://mulheresmochileiras.com/2017/10/22/expedicao-monte-roraima-roteiro-trekking/
Excelente relato Evandro!
Vejo como positivo não ter se preocupado com a parte prática, pois se tornou uma viagem com emoção para você. Se tivesse pensado em tudo, e saído conforme o esperado, teria sido uma viagem sem graça.
Além da beleza da região, os desafios que enfrentamos e superamos tornaram esta jornada ao MR inesquecível.
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