Brasília, 4 de julho de 2020.
https://www.strava.com/activities/3714080209
Desde minha última viagem ao Rancho Cristaluna, em maio de 2020, havia uma pendência a ser resolvida do lado de lá da BR-040. Mapeei caminho nunca dantes pedalado por este ciclista que vos escreve. Chamei a rota de Cristaluna Oeste, afinal, em vez de seguir pelo tradicional Caminho de São Bartolomeu, também conhecido como Trilha Cristaluna, que passa pelo leste da BR-040, essa nova rota levaria-nos pelo oeste da referida rodovia. Em maio, acabamos optando por caminho mais fácil e ficou a pendência de percorrer a nova trilha.
Foram várias semanas de negociação, até que Cristóvão (sempre ele), sugeriu que fôssemos no dia 4 de julho, e o motivo causou-me arrepios: “É que vai ter lua cheia, assim, nem precisamos levar lanterna.” Sim, Cristóvão planejava levar o dia todo e parte da noite para concluir a trilha de pouco mais de 140 quilômetros. Confesso que pensei em desistir. Não pela dificuldade do percurso, mas pelos contornos dramáticos que a jornada começava a ganhar. Chegar de noite, no frio que costuma se espalhar pelas chapadas do Planalto Central nas ressecadas noites de inverno não é um programa que me agrada. Mesmo assim, durante a semana pratiquei yoga e meditação, tomei suco de maracujá com chá de camomila e preparei-me para exercitar minha solidariedade, amizade e paciência.
Na sexta-feira da semana anterior, avisei os amigos: “Preparem-se pois o percurso é duro. Precisamos de bom preparo físico, ritmo e sorte. Treinem forte na semana que vem. Coloquem pneus novos.”
Na segunda-feira à tarde, saí com Silvio Sá para um treino rápido. E não é que na primeira curva o amigo levou um tombo! Foi arrumar o capacete, trombou numa pedra e foi ao chão. Na bicicleta, entortou a gancheira, em Silvio, entortou a cabeça. Ele ficou meio atordoado, mas levantou-se e continuamos. Pegamos a ciclovia da EPVP e cerca de cinco quilômetros depois, ele disse: “Evandro, vou voltar. Está dando tilt na minha cabeça.” Preocupado com seu estado de saúde, voltei com ele. Viramos as bikes e retornamos. Logo no início da volta, Silvio perguntou-me: “Evandro, o negócio tá ficando feio. Nem me lembro como eu caí. Como foi?” E eu expliquei-lhe. Mais quinhentos metros de pedal e ele me disse: “Evandro, o negócio tá ficando feio. Nem me lembro como eu caí.” Pensei que ele estava brincando, e perguntei: “Tá zoando, né?” Pois não estava. Encurtando a história, até chegarmos a sua casa, ele perguntou-me quatro vezes como tinha sido o acidente e, na frente do prédio onde mora, perguntou mais uma vez. Deixei-o em casa, de onde foi conduzido ao hospital pelo irmão. Nada grave. Só deu uma misturada nos sabores da gelatina que tem dentro da cabeça dele, o que algumas horas de geladeira foram suficientes para resolver.
Na quinta-feira, Cristóvão avisou que estava fora da aventura. Seu pai estava com problemas de saúde. Mesmo assim, mantivemos o planejamento.
Sábado de manhã, 6 horas da matina, a turma reuniu-se na Estação Arniqueiras do Metrô-DF. Para nossa surpresa, Cristóvão estava lá. Ele decidiu pedalar a parte inicial da rota, que seria de asfalto, até a Embrapa Hortaliças, na DF-180. Encontramos ele comprando café com leite, e logo pela manhã ele já ia fazendo das dele, esquecendo a caramanhola na banquinha em frente a estação. Cristóvão, sempre ele!
Tiramos foto para registrar a partida e começamos a empreitada.

Atravessamos Águas Claras e Taguatinga e seguimos pela BR-060 até seu entroncamento com a DF-180. Seguimos pela rodovia distrital até a Embrapa Hortaliças, onde deveríamos entrar na terra, mas, onde antes havia um carreador, só encontramos terra revirada. O terreno foi trabalhado, arado, preparado para o plantio, e a estrada removida. Lembrei-me de outras estradas que sobem a chapada do Núcleo Rural Ponte Alta de Cima, onde tínhamos que chegar, e seguimos pedalando pelo asfalto por mais alguns quilômetros, até encontrar o caminho para o alto na estrada que cruza o Córrego Barreira e adentra setor de chácaras. Despedimo-nos de Cristóvão, que seguiu rumo ao Gama. Foram 26 quilômetros de asfalto até conseguirmos nos livrar dele (do asfalto, não me entendam mal).
Terra adentro no setor de chácaras, depois de alguns vai-vens, encontramos o caminho.

Lembra da gancheira torta de Silvio, pois é, ele desentortou com a mão no dia do tombo, mas alumínio é traiçoeiro e não suporta por muito tempo o desaforo do desempenamento. Na primeira subida forte, o câmbio entrou pelo meio dos raios e a gancheira quebrou de vez. Fim da brincadeira para Silvio, que teve que fazer ligação direta da corrente e voltar para casa sozinho. Dos quatro que partiram, restaram dois.
Seguimos pelo alto da chapada até o Clube Caiçaras, onde paramos para Alexandre comprar alimentos e repor a água no mercadinho. Segundo meu planejamento, estávamos trinta minutos atrasados.
Continuamos pedalando pelo alto da chapada. Em poucos minutos voltamos ao tempo planejado e logo depois saímos do Distrito Federal, adentrando terras goianas. A estrada segue pelo divisor de águas, desviando dos riachos existentes na área. Forte descida começa depois da nascente do Córrego Morro Redondo, e a estrada passa pelas nascentes do Córrego Barriguda, Córrego Capão do Ouro e Córrego Sítio Novo, até subir na chapada oposta, não tão alta quanto a primeira. É subida forte, que segue na sombra de plantações de eucalipto, estrada percorrida pela Trilha Sete Curvas, velha conhecida dos ciclistas do DF.
No alto dessa chapada, havia muita poeira na estrada. É o famoso talco do Centro Oeste que forra o chão de muitas estradas nessa época do ano. Em alguns pontos, a roda da bicicleta afundava na poeira fazendo sumir parte do pneu. O pior é que a poeira sobe e dificulta a respiração. Felizmente, as máscaras que protegem contra o coronavírus também seguram a poeira.
Logo chegamos ao Bar de Lata, conhecido ponto de apoio para ciclistas que passam pela região. Paramos e tomamos caldo de cana. Já eram 10 horas da manhã.

Sem delongas, continuamos a jornada pelo alto da chapada, mas não demorou muito e começamos a descer, e muito, para atravessar o Rio Alagado, um dos afluentes do Corumbá que teve seu vale inundado pelas águas da represa de Corumbá IV. A descida de 2,6 quilômetros tem 250 metros de desnível.

Passado o rio, na subida avista-se, no fundo do vale, um braço da represa. Vale a pena parar um pouco e apreciar a paisagem, descansar, pois a subida é longa.

Depois de chegar ao alto, tivemos que descer para cruzar o Córrego São Sebastião, que fica quase na mesma altitude do Rio Alagado, e subir tudo de novo. No total, desde o Alagado, subimos 281 metros em pouco mais de 5,5 quilômetros. O que encontramos no alto foi a GO-425, estrada de terra que liga o Novo Gama a Corumbá IV. Seguimos por essa estrada rumo sudoeste por seis quilômetros.
Nessa região está sendo construído o Sistema Produtor de Água de Corumbá, que vai garantir segurança hídrica para o Distrito Federal e cidades goianas do Entorno. Apesar do nome, o sistema foi construído no Rio Alagado. No entroncamento da GO-425, com a estrada que dá acesso ao Sistema Produtor, entramos à direita em uma antiga estrada da região, que foi fechada depois que outros acessos foram construídos. Ela passa por dentro da Fazenda Jacobina, em lindas áreas de cerrado.

Depois de passar por uma floresta de eucaliptos e escalar a estrada por dentro de área de cerrado, fizemos parada numa área plana, na sombra, para descansar. Já estávamos com 75 quilômetros de pedal, mais da metade do percurso.
Seguindo, passamos pelo Córrego Indaiá, afluente do Rio Jacobina. Depois de alguns tobogãs e oito quilômetros, saímos da fazenda e chegamos na Rodovia Lucena Roriz. Pegamos três quilômetros de asfalto para atravessar o Ribeirão Palmital e voltamos para a terra. Esse trecho depois do Palmital foi outro grande desafio. A subida começou na ponte e estendeu-se por seis quilômetros. A estrada sobe entre dois afluentes do Palmital. Dos dois lados, profundos vales, e a estradinha vai encarando o terreno de frente, sem muitos rodeios, deixando a inclinação por conta do ciclista. A vista é bonita, o que compensa o esforço.



Logo depois, passamos pelo Lixão de Luziânia. Foi a parte mais feia do caminho. Tinha lixo na estrada, fogo, fumaça, catadores de recicláveis buscando seu ganha-pão.

Aos 91 quilômetros de pedal, chegamos à Rodovia GO-010, pela qual seguimos por dois quilômetros até o distrito luzianense de Três Vendas. É o ponto de apoio ideal dessa trilha. Chegamos por volta de 12h30 com noventa quilômetros percorridos. Logo na entrada da comunidade, há posto de gasolina. No comércio do posto, fica o Restaurante Empório Caipira, onde almoçamos. Prato-feito, comida boa e simples.
Às 13h30, voltamos à atividade. Saímos de Três Vendas por terra e seguimos por três quilômetros na direção de Luziânia. Foi o ponto mais próximo que chegamos da cidade goiana: estávamos a quatro quilômetros do limite urbano. Atravessando lavouras de sorgo e milho, chegamos à Rodovia Galdino Borges. Enfrentamos outro longo trecho de asfalto de onze quilômetros. Foi nesse trecho que tivemos o único contratempo da trilha: meu pneu traseiro furou. Enquanto consertávamos o pneu, pickup parou ao nosso lado. Perguntei a Alexandre: “Assalto ou ajuda?” Felizmente, era uma boa alma oferecendo ajuda, um irmão de ciclista. Sabendo de nosso destino, comentou: “Vocês vão pro São Bartolomeu? Vixe! Tá muito longe.”
Também passamos pela entrada da histórica Fazendinha JK, a última morada do ex-presidente Juscelino Kubitschek. A casa é o único projeto rural do arquiteto Oscar Niemeyer e o projeto paisagístico de Roberto Burle Marx. A história do lugar é interessante. Em viagem de avião para Brasília, JK teve seu pouso proibido pelo governo militar no Aeroporto de Brasília. Sem combustível para voltar à origem, o avião pousou no então Aeroporto Rural de Brasília, localizado em Luziânia/GO. Ao chegar, pediu que fosse levado a algum local em que, pelo menos, pudesse ver Brasília ao longe. Foi assim que conheceu o lugar onde alguns anos depois, em 1969, adquiriu a fazenda. Enfim, vale a visita quando estiver aberta. Em tempos de pandemia, só pudemos ver a porteira.

Logo depois, voltamos para a terra. Quando seguíamos paralelamente à Fazendinha JK, um carro passou por nós lentamente. Ele passou bem próximo, outro susto, e passaram gritando. O carro estava cheio de gente e a moça no banco do carona tirou a blusa e colocou os peitos para fora. É cada coisa que acontece nesse “Goiais”! Assim como o relevo do centro-oeste, os morrotes da moça estavam desgastados e erodidos.
Desde Três Vendas, percorremos planaltos. Os trechos planos fizeram a viagem render. As chapadas do centro-oeste tornaram-se grandes lavouras e o cerrado vem desaparecendo. Passamos por plantações de milho, sorgo e milheto.
Quando descíamos para o atravessar o Ribeirão Viegas, vimos, ao longe, grandes áreas esbranquiçadas. Seria neve, ou lavouras de algodão?

Apesar do frio que está fazendo de noite, era algodão. Atravessamos a grande lavoura e aproveitamos para tirar umas fotos.

Lavouras de algodão são muito procuradas por fotógrafos que aproveitam a paisagem em seus trabalhos.

Terminadas as áreas de lavoura, quatro vales nos separavam da BR-040. Apesar do tobogã, foi uma parte agradável da trilha. Com o sol quase se pondo, passamos por estradas sombreadas. O primeiro vale foi o do Córrego Caetano, depois o Córrego Sumidor e, logo à frente, novamente o Caetano. Quando a paisagem abriu e surgiu a vista do último vale, chegou a bater o desespero. A subida do Ribeirão Vermelho assusta. Mas fazer o que, né? Vida de ciclista é assim mesmo, a gente sofre… mas gosta!

E assim, enfrentamos o último desafio do dia. No final do castigo estava a BR-040. Acabou a sofrência. Dali até o São Bartolomeu, só descida. Seguimos pela BR e logo passamos pelo rio, divisa dos municípios de Luziânia e Cristalina. Do outro lado da ponte, o distrito de São Bartolomeu. Chegamos!

Eram 17 horas. Foram 147 quilômetros de trilha com 1.626 metros de subida.
Para ir ao Rancho Cristaluna, faltavam ainda cinco quilômetros, mas como Cristóvão não veio conosco, preferimos parar por ali.
Quando cheguei, vi que um grupo de ciclistas estava na comunidade. Entre eles, estava o amigo Fábio Siqueira, o Fabão da TVN Brasil. Ele chegou ali pelo Caminho de São Bartolomeu com o grupo Pedala Mangueiral, de São Sebastião/DF. Dois componentes do grupo são seguidores do Ser Pedalante: Marcelo Santos e Francisco Júnior. Eles reconheceram-me e vieram falar comigo. Segundo Júnior, foi meu relato de outra jornada ao Cristaluna, em dezembro de 2019, que inspirou a turma a fazer a trilha. Que legal! Sinal de que meu trabalho está inspirando as pessoas. Eles gostariam de ter conhecido Cristóvão-Sempre-Ele, mas não foi dessa vez.

Como o grupo estava numa van e voltariam para Brasília, tentamos conseguir carona, mas não havia vagas. Então, ligamos para nosso resgate vir buscar-nos. Enquanto ele não chegava, fomos comer espetinhos num quiosque e reidratar.
Nossos amigos do Mangueiral partiram por volta de 19 horas, e nada de nosso resgate aparecer. Quando finalmente conseguimos contato pelo telefone, descobrimos que o motorista havia errado o caminho. Em vez de pegar a BR-040 no sentido de Cristalina, pegou a BR-060 no sentido de Goiânia, mas já havia detectado o erro e corrigido a rota.

O clima foi esfriando e nós lá, na beira do rio, sem agasalho. Pelo menos a lua cheia encomendada por Cristóvão, a Crista-Luna, deu as caras para iluminar a noite.
O resgate chegou por volta de 20h30 e finalmente pudemos voltar para casa.
Essa rota é uma boa opção para chegar ao São Bartolomeu e ao Rancho Cristaluna. E aí, vai encarar?
Agora deu até vontade de fazer esse pedal! Pensando em pernoitar no Rancho Cristaluna e voltar no outro dia com o grupo (ou quem ainda tiver perna para voltar)… Será que o Rancho está funcionando normalmente? Não consegui contato com ele…!
Parabéns pela aventura!
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O telefone do Cristóvão é (61) 98466-8082 . Mande um Zap.
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