Botucatu, 10 de fevereiro de 2008.
“Oito partirão, mas apenas quatro chegarão.”
Parece até chamada de filme da Sessão da Tarde, mas não é. É o resultado da combinação de trilha longa com ciclistas despreparados.
A primeira vez que ouvi falar sobre a Fazenda Barreiro Rico*, fiquei imaginando onde seria esse lugar de nome tão peculiar, rústico e misterioso. O que ela guardaria? Que paisagens? Que mistérios? Que riquezas? Com o passar do tempo, fui me informando e descobri que a fazenda ficava bem perto de Botucatu, e que um dia de pedal bastaria para conhecê-la. Várias vezes nossa turma combinou de fazer esse percurso, mas sempre algo dava errado, como por exemplo na vez em que o quadro de minha bicicleta quebrou, ainda na ida, a trinta quilômetros de Botucatu. Finalmente, neste 10 de fevereiro, conseguimos reunir oito Caiporas para percorrer o trecho.
Às 7 horas da manhã, nos reunimos na Praça Paratodos, centro de Botucatu, de onde partimos rumo à Serra da Bocaina. Os Caiporas que toparam a aventura foram: Eduardo Borná, Lucas, Guilherme Pilan, Fernando Castro, Edu Carrega, Mateus, eu e outro ciclista cujo nome não me recordo.

Enfrentamos a primeira subida do dia pelas ruas do Bairro Alto, e logo chegamos na entrada da estrada rural. Descemos a serra rapidinho e paramos na curva do mirante para reunir a turma e apreciar a bela paisagem. Foi aí que chegou Lucas com notícia preocupante: Guilherme tinha sofrido um acidente. Apreensivos, subimos rápido para socorrer o amigo. Felizmente ele estava bem. O que ocorreu, apesar de trágico, foi engraçado. Quando passava pela entrada de um sítio, um cavalo saiu correndo e Guilherme não conseguiu desviar, trombando no traseiro do cavalo e caindo no chão. Ele fez um corte no joelho e reclamava de dores no local, o que o fez desistir do passeio e voltar para casa junto com o Lucas.
Os seis sobreviventes continuaram. Nós descemos a serra novamente, passamos pelo Morro do Peru e pelo Rio Bocaina, e seguimos rumo a Piapara.

Logo que cruzamos o Rio Bocaina fomos surpreendidos por uma matilha de cachorros-do-mato, que por alguns instantes abriram o caminho à nossa frente. Depois, muita areia e eucalipto até chegar a Piapara, sempre com muito bom humor e risadas pelo caminho, característica marcante dos Caiporas.


Chegamos a Piapara bem cedo. O bar do Macedo ainda nem estava aberto. Esperamos a turma agrupar enquanto Edu colocava em dúvida a fidelidade de sua esposa. Depois, continuamos a trilha rumo a Anhembi. Subidas e descidas constantes num trecho arenoso no vale do Rio Alambari.

Mas poucos quilômetros antes da cidade é que a coisa foi ficando mais feia. Há longa subida para chegar a Anhembi. Estávamos com cerca de cinquenta quilômetros rodados quando adentramos a pequena cidade em busca de uma padaria para lanchar. Encontramos uma nas proximidades da igreja. O Edu, que havia sumido quando nos aproximávamos da padaria, reapareceu com um monte de bananas. É que ele foi pedir bananas despencadas na feira que já estava acabando, e conseguiu quase uma dúzia para dividir conosco. Além das bananas, nos fartamos com sanduíches de queijo e gatorades.
Anhembi é o nome indígena do Rio Tietê, que significa “rio das anhumas” (anhuma é uma ave).

Continuamos nosso caminho atravessando a ponte sobre o Tietê. O velho Anhembi forma várias lagoas nessa área. Deve ter sido um paraíso nos tempos que os índios eram senhores dessa terra. O livro Rumo ao Centro-Oeste Paulista, de Anthemo Feliciano, relata um genocídio que teria ocorrido por essas bandas. Vale a pena a leitura. É um livro muito interessante.
Depois de cruzar o Tietê, enfrentamos oito quilômetros de subida que nos fizeram suar a camisa naquele asfalto quente. Mas lá no alto o visual recompensou: a Cuesta, o Tietê, Anhembi e, finalmente, a entrada do Barreiro Rico.

Mais uma vez paramos para reagrupar, e dessa vez a turma cresceu. Um gatinho preto apareceu, esfomeado, pedindo comida. O Edu Carrega tinha algumas ideias sobre o que fazer com o gatinho, mas nós não deixamos nada de mal acontecer com o bichinho, pelo contrário, demos comida e água para ele. Foi nossa boa ação do dia.

A estrada do Barreiro Rico começa entre florestas de eucalipto, até virar à esquerda e seguir por uma mata fechada. Aos poucos a mata nativa dá lugar novamente ao eucalipto até chegar nas proximidades da fazenda, onde pastagens dominam a paisagem. De um ponto alto da estrada, sobre um mata-burro, podíamos ver a sede da fazenda, o Cristo e o rio Piracicaba.
Seguimos pela estrada vendo o Rio Tietê do nosso lado esquerdo, de onde soprava vento forte que mexia com força as folhas das palmeiras no meio da pastagem. Mais alguns quilômetros e chegamos ao nosso objetivo.
Fazenda Barreiro Rico
A Fazenda Barreiro Rico fica num lugar privilegiado, um estreito pedaço de terra entre dois grandes rios paulistas: o Piracicaba, ao norte, e o Tietê, ao sul. A antiga fazenda guarda grandes e belas construções, matas preservadas e até um Cristo Redentor. Ela foi criada no início dos anos 1900 e, em 1926, foi adquirida por Carlos Leôncio de Magalhães (Nhonhô Magalhães). Na época, as terras estavam cobertas por exuberante mata atlântica, que aos poucos deram lugar a pastagens e lavouras de fumo e algodão. Em 1935, a fazenda deu início à criação de gado nelore, sendo considerada um dos mais antigos criatórios do Brasil.
Da porteira da fazenda, avistávamos antigas construções, como vendas, hospedarias, currais e a grande sede. Na frente disso tudo, uma placa: Barreiro Rico. As construções são do início do século XX. Em 1934 ficou pronta a nova casa de sede e a capela. Em 1956 outra casa de sede foi construída.


Depois de pequena pausa para fotos, deixamos a sede e chegamos no topo de uma grande ladeira asfaltada. Estávamos na altura do Cristo mas antes de chegar até ele, tivemos que descer. A estrada segue pela baixada.
O Cristo fica no alto de um morro, de onde abençoa a fazenda, com seus braços abertos na direção da sede. O Cristo de concreto tem quatro metros de altura e foi construído em 1934.
Já o morro, tem cinquenta metros de altura, e foi cansativo escalá-lo.

Lá de cima avista-se a enorme mata que iríamos atravessar, um cobertor verde preenchendo inúmeros vales.

Também podíamos contemplar o Rio Tietê, ao sul, e o Rio Piracicaba, ao norte. Um verdadeiro mar de água que se encontra na represa da Usina Hidrelétrica de Barra Bonita. Já avistávamos também o nosso destino: a ponte da SP-191 sobre o Rio Piracicaba.


Somente Edu, Mateus e eu escalamos o morro. Fernando até tentou, mas as cãimbras o obrigaram a desistir. O resto do grupo seguiu viagem. Lá de cima, também vimos o pai do Mateus chegando de carro para buscá-lo. É que ele passou a noite toda na balada e estava dormindo em pé. Descemos o morro e Mateus seguiu com seu pai. Sobramos Edu e eu, que entramos correndo na mata para alcançar o grupo avançado.
Estação Ecológica de Barreiro Rico
Essa linda floresta de quase 2,5 mil hectares de mata atlântica, que foi preservada pelos proprietários da fazenda, abriga uma espécie rara, ameaçada de extinção. Ali vive o muriqui-do-sul, ou mono-carvoeiro, um primata de pêlo claro que os índios chamavam de “o povo manso da floresta”.

Parte da floresta, cerca de trezentos hectares, é uma unidade de conservação estadual, a Estação Ecológica de Barreiro Rico, o restante faz parte da reserva legal da fazenda e áreas de preservação permanente. Ela constitui importante unidade de preservação, que é mais conhecida fora do Brasil do que dentro dele, devido à presença dos muriquis e à riquíssima biodiversidade. Muitos cientistas e pesquisadores desenvolveram teses universitárias, pesquisas e inúmeros trabalhos científicos nas terras do Barreiro Rico.
A reserva florestal abriga fauna rica e variada, muito próxima da originalmente existente na região. Entre mamíferos e aves, quinze espécies encontradas lá são consideradas ameaçadas de extinção. O exemplo mais notável é o muriqui, o maior macaco das Américas, altamente ameaçado, e que é facilmente visto por quem percorre as trilhas da mata devido a sua docilidade. Essas matas abrigam a maior comunidade de muriquis-do-sul atualmente conhecida.
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A estrada que corta a floresta foi aberta em 1932, um “picadão” na mata virgem para ligar a fazenda à cidade de Santa Maria da Serra. Nosso caminho seguiu pelo picadão, um cansativo sobe e desce interminável no meio da mata, num estradão reto e comprido, a perder de vista. Não demorou para que alcançássemos o grupo da dianteira, pois o Borná teve um pneu furado e todos pararam para ajudá-lo. Já eram 13h30 e nossas famílias nos esperavam na ponte do Rio Piracicaba, onde almoçaríamos.
Preocupados, Edu e eu seguimos viagem. Sobe, desce, sobe, desce, sobe mais, e a mata não terminava. Quando finalmente saímos da floresta, bastaram mais dois quilômetros para chegarmos à rodovia SP-191, na grande placa “Barreiro Rico”. Foi essa placa que despertou minha curiosidade sobre a fazenda.

Seguimos rumo nordeste e foi praticamente só descida até a ponte sobre o Rio Piracicaba, onde fomos recebidos com festa por nossos familiares. Logo depois, chegaram Borná e Fernando. Dos oito ciclistas que partiram, apenas quatro chegaram à ponte do Piracicaba. Alguns desistiram pelo caminho, outros continuaram o pedal até Botucatu. Para quem foi até o Rio Piracicaba, foram 77 quilômetros de pedal.
Nós almoçamos num pequeno restaurante que há na vila de pescadores que formou-se no entorno da ponte. Comemos muitas porções de peixe frito. No final da tarde, um refrescante mergulho nas frescas águas do Rio Piracicaba aplacou um pouco o calor. Voltamos para casa de carro, cada um com sua família.
Valeu a pena. É disso que eu gosto. Pedal com história, natureza e aventura.
* A Fazenda Barreiro Rico mudou de nome anos depois da realização desta trilha. Hoje, ela chama-se Fazenda Bacury.