por Evandro Torezan
Brasília, 16 de janeiro de 2015
https://www.strava.com/activities/242104114
Você já conversou com algum mendigo, com algum ébrio costumaz de sua cidade, com algum maltrapilho que lhe cruza o caminho? Nós fomos educados a ter medo dessas pessoas. É o instinto protetor de mães e pais que inserem em nossa mente a ideia de que essas pessoas são perigosas por serem diferentes, por estarem sujas ou embriagadas. Nossos genitores tem seus motivos. Os pais não querem que seus filhos aprendam que esses comportamentos são normais, querem evitar agressões vindas de pessoas entorpecidas e também querem evitar o contato de sua cria com qualquer tipo de doença que humanos pouco asseados possam carregar.
Eu confesso que, depois de adulto, deixei o preconceito de lado e passei a gostar de conversar com esse tipo de gente que fui ensinado a temer. Primeiro porque são humanos e merecem atenção. Segundo porque, atrás da aparência às vezes repulsiva, essas pessoas têm histórias que eu adoro conhecer, histórias de luta, abandono, fracasso, sucesso, aventura. Caminhos retos ou tortos, boas ou más histórias, sempre aprendo algo novo conversando com essas pessoas e, acredite, quebrada a primeira barreira, geralmente, eles mostram-se não tão “diferentes”. Se eles não evitarem seu primeiro contato, vão conversar como iguais e vão gostar de conversar, de falar sobre suas vidas, algo que não têm muitas chances de fazer.
Mas porque uma introdução tão longa sobre o assunto? Veremos à frente.
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Depois de mais de 45 dias sem pedalar longas distâncias, curtindo férias e festas de final de ano, estava louco por um pedal longo. Como não fui nenhuma vez pedalando para Pirenópolis em 2014, resolvi começar 2015 mudando isso. Aproveitei os últimos dias de minhas férias e convoquei Sílvio Sá para fazer um pedal até Piri saindo às 14h, ou seja, chegaríamos de noite a nosso destino.
Encontrei Sílvio na estação Arniqueiras do Metrô-DF e saímos de Águas Claras pedalando pelo Areal, passando atrás da Universidade Católica de Brasília, até chegar ao Pistão Sul, a poucos metros da BR-060. Seguimos pela BR, passando rápido por Samambaia. Em uma hora de pedal chegamos ao Posto Chaves. Tomamos um pouco d’água e seguimos para Santo Antônio do Descoberto pela DF-280.
Deixamos o DF após cruzar o Rio Descoberto. Passar por Santo Antônio é sempre tenso e desta vez foi pior. A cidade é a mais violenta do Entorno e para chegar ao começo da trilha há longas subidas pela principal avenida. Já estávamos quase fora da cidade quando um motoqueiro, levando um carona, emparelhou ao Sílvio. Eu estava dez metros atrás. O coração disparou. Pensei que era assalto! Os caras seguiram ao lado de Sílvio, conversando por alguns minutos e depois partiram. Quando eu alcancei o amigo, ele me contou que também assustou-se, mas os dois só queriam conversar mesmo, eram ciclistas da cidade. Que susto!
E assim, finalmente chegamos ao início da estrada de chão que nos levaria a Pirenópolis. Na primeira sombra, paramos para descansar.

Próxima parada: Chácara do Vilmo. Escalamos a chapada. Seguimos passando pelas propriedades rurais da região. Logo chegamos ao Rio Areias. O rio estava baixo para a época. O Planalto Central começou sem chuva o ano de 2015.

Cruzamos o rio e paramos no Vilmo, cuja chácara fica a poucos metros da margem do rio. Tomamos refrigerante. O Vilmo disse que apesar de estar mais baixo que o normal, o rio enche mesmo em fevereiro. Tomara!
Há uma longa subida depois da Chácara do Vilmo. Já começa forte, fazendo as bikes derraparem a roda traseira, e vai subindo … Do lado direito, pastagens; do lado esquerdo, as escarpas do morro, com cerrado ralo e pedras expostas; no alto do morro, a estrada entra de vez no meio do cerrado. A subida forte termina em cinco quilômetros, mas depois continua leve, totalizando 25 km. É um trecho interessante, que passa por estradas sem trânsito, acesso de fazendas, cerradões. No final, chega na GO-225, trecho sem asfalto. Periquitos, araras e papagaios cruzavam o céu, voltando aos ninhos no final da tarde.

Quando chegamos ao Bar do Botinha já eram 19h. Foi a parada para o lanche. Comi meu atum com pão e tomamos refrigerantes.
Saindo do Botinha, entramos na Fazenda Santa Mônica, de Eunício de Oliveira, ex-Ministro das Comunicações que concorreu ao Governo do Ceará em 2014. Descemos rápido a estrada que entra na fazenda, pulando as curvas de nível. Adentramos no corredor de ficus e eucaliptos que sombreiam a área da sede da fazenda.

Carros da Polícia Militar e carros de segurança particular passavam o tempo todo. Um cachorro tentou nos pegar enquanto sua dona varria o terreiro em frente a uma das casas da fazenda.
Logo à frente, a subida mais íngreme do dia, de poucos metros, mas que quase vira a bike para trás. Depois, descida para cruzar um riacho e depois tome subida novamente, longa. Na saída da fazenda, placas penduradas nas cercas indicavam que algo estava fora do normal. “Cuidado com as minas”, diziam as placas.

Na beira da mata, às margens do riacho, havia um acampamento de sem-terras. Cruzes e faixas ao lado da estrada indicavam que algo grave havia ocorrido ali. Muito movimento de carros entrando e saindo do acampamento.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com o apoio do PT, deixou de ser um movimento pobre. O líder nacional tem salário equivalente ao de um Ministro do STF e os integrantes do movimento estacionam carros novos ao lado de suas barracas. Num morro dentro do terreno, torre de observação foi montada, onde sem-terras armados mantinham vigilância. É praticamente uma FARC tupiniquim.
Saindo da fazenda, começa uma subida leve que vai até o início da longa descida antes de Corumbá de Goiás. A noite caiu quando passávamos por esse trecho. Fomos tentando resistir à falta de luz, mas, quando os últimos raios de sol sumiram no horizonte, tivemos que parar e ligar as lanternas. A lanterna do Sílvio parecia um farol de moto, enquanto a minha não iluminava nem dois metros de estrada. Mais um pouco de pedal e pronto, começou a descida. Em poucos minutos chegamos a Corumbá.

Fomos para o Restaurante Casarão, que fica num posto de gasolina. Carro com som altíssimo não nos deixou relaxar. O som era tão potente que a bateria do carro não dava conta da demanda de energia, assim, havia ligado um fio numa tomada do restaurante. Compramos algumas coisas para comer e beber. Eu estava muito cansado, quase frito. Descansamos vinte minutos e partimos. Faltava pouco mais de vinte quilômetros.
Passamos pelo trevo de Corumbá, seguimos rumo a Pirenópolis e entramos à direita na primeira rua que encontramos. A subidinha ali é triste! Quando saímos da área urbana, sem iluminação pública, pudemos ver o breu em que nos metíamos. Nada de luz da lua. Só nossas lanternas para iluminar o caminho até Pirenópolis.
No escuro, entrávamos nos bancos de areia sem os ver. Pedalando noite adentro fomos passando pelos sítios, matas de eucalipto, riachos. Num porteira, uma placa indicava: “Caminho de Cora Coralina”.

Fiquei curioso e pesquisei.
Numa passagem de fazenda, Sílvio, que estava na frente, atraiu os cães para a estrada e quando eu passei, lá estavam eles esperando-me. Apesar de cansado, tive que acelerar para fugir dos cachorros.
Chegamos numa área de cerrado preservado e a estrada passou pelo meio. Um coelho cruzou nosso caminho assustado e também assustou-nos. Saindo do cerrado, as luzes de Pirenópolis apareceram no fundo do vale, mas, para chegar lá, teríamos ainda a melhor parte da trilha: mato até chegar à cidade.
De cara, tem um single profundo, erodido, cheio de pedras soltas. Bem na sua entrada, escorreguei na grama molhada e levei um tombo. Entramos no single e, com muito cuidado, seguimos, passando por alguns riachos. De repente, apareceu uma grande porteira pintada de preto. Parecia não ter como passar. Felizmente, havia passagem pela lateral, quase caindo numa vala. Passamos com cuidado e entramos na mata. Essa área a leste de Pirenópolis, onde estão algumas nascentes do Rio das Almas, é cheia de mata e a estrada segue pelo meio dela. O Sílvio sumiu na frente, com sua super lanterna, e eu segui com minha minguada luzinha. Assim, chegamos à Rodovia Parque dos Pireneus. Seguimos pelo asfalto e entramos em Pirenópolis. Um bar novo, próximo ao museu Rodas do Tempo, estava lotado. Soubemos que a cerveja ali é mais barata, por isso a lotação. Fomos direto para o centro e paramos na Rua do Lazer.

Foram 130 km de pedal, 1585 m de subida acumulada. Iniciamos às 14h e terminamos às 23h, nove horas de pedal com cerca de três horas pedalando no escuro.
Depois de nos reidratarmos, fomos para a Pousada Portal Pirenópolis, que Sílvio havia reservado. Ela ficava na rua de acesso ao Morro do Frota. Fizemos check-in, tomamos banho e voltamos à Rua do Lazer para jantar. Comemos pizza.
Pirenópolis, 17 de janeiro de 2015
A missão do dia era voltar para casa. Acordamos cedo e ficamos esperando o café da manhã. A moça da pousada andava pra lá e pra cá, mas nada de café. Vendo-nos ali, esperando, perguntou: “Vocês querem café?” Respondemos “sim” em uníssono. Ela foi para o fogão, ligou o fogo, colocou água para esquentar e continuou varrendo o pátio. Foi aí que resolvemos perguntar e soubemos que não havia café da manhã em nossa pousada. Então, fomos ao mercado e compramos algo para comer.
Depois, juntamos nossas coisas e fomos para a rodoviária. No caminho, pequena parada na Igreja do Rosário para registrar nossa passagem pela cidade. A igreja estava linda! Pintura nova.

Às 9h estávamos na rodoviária de Pirenópolis. O ônibus das 9h30 chegou lotado e tivemos que esperar o próximo, três horas e meia de espera. Além dos outros passageiros, dois “bêbados” nos faziam companhia nos bancos de madeira colocados frente a frente, separados por uma comprida mesa de pedra ao lado do guichê de venda de passagens. Um deles, deitado num banco, dormia. O outro, puxava conversa com todos. Alguns se afastavam, outros o ignoravam. Medo, nojo, pena. Sentimentos diversos afloravam nos rostos. Quem seriam aqueles homens? O que os levou àquela vida?
Chegou a minha vez de ser abordado pelo falante. Dei-lhe atenção e acho que era tudo que ele queria. João Pereira, pardo, 43 anos, 1m80cm de altura, chapéu de lona na cabeça, sentou-se à minha frente e começou a falar. Dizia ser talentoso e rico, com a geladeira cheia em casa. Disse ter sido morador de rua e agora tinha casa e trabalho em Jaraguá/GO. No meio da conversa, seu “talento” aflorou e começou a cantar. Apoiei-o, dizendo que realmente tinha talento. Sílvio aplaudiu o cantor.
Com a cantoria, o outro homem, Paulo, acordou. Ele tremia devido à abstinência alcoólica. Atraído pela música, sentou-se ao lado de João. Não se conheciam, mas a amizade floreceu rapidamente. João, o “rico”, pagou-lhe uma cerveja.
A história de Paulo é mais triste. Parecia ter cerca de 35 anos, branco, paraibano de Conceição. Saiu de casa há 6 anos, sem rumo. Andou pelo Nordeste, depois veio descendo o mapa rumo ao Sul. Perguntei-lhe sobre o motivo de sair de casa. Com olhar triste, respondeu que sofria humilhação dos familiares, e preferiu deixá-los. Seu maior sonho era voltar para casa e rever a mãe. Com o efeito do álcool espalhando-se pelo corpo, aos poucos parou de tremer e começou a cantar junto com João. A inusitada dupla recém-formada permitiu que eu filmasse seu primeiro show. Com vocês, Paulo e João Pereira:
Os que haviam se afastado, aos poucos, voltaram, atraídos pelas nossas risadas e pela cantoria da dupla. E assim, os homens repulsivos tornaram-se simpáticos. Cantaram outras músicas, contaram mais histórias e, depois de muita prosa, partiram para o bar, afinal, depois do show, há de se molhar o bico.
A nós, a plateia, sem os sucessos da dupla, restou embarcar nos respectivos ônibus e voltar para casa levando nova lição de vida na bagagem.
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Às 17h, chegamos à Rodoviária de Taguatinga e pegamos o metrô para voltar para Águas Claras.
Pedalar para Pirenópolis num horário diferente do que estávamos acostumados foi muito interessante. Tudo muda: sons, luzes, animais, clima. Valeu a experiência. Sem essa inovação, não teríamos curtido um show tão especial, nem teríamos levado essa nova história pro currículo.